A apressada corrida pelo mosto, que se escorre na madrugada manhã nublada, no asfalto fresco de uma encosta de aluvião, depois do nevoeiro fumarento da semana votada aos incêndios apadrinhados por interesses órfãos, obriga-me a travar a carrinha a meio da subida numa incógnita freguesia de Souselo. O barrigudo vindimador sorri, apanha o cacho de uvas brancas, caprichosamente prenhes de néctar adocicado, cujo melado escorria pelo grosso braço de calceteiro e se prendia à camisola desportiva, que com um encolher de ombro puxava à razão. Sorriu-me bonacheironamente, na ignorância de uma existência terrena e que, talvez por isso, se viva de forma mais humana, desprendida, na verosímil cadência de um dia a seguir ao outro. Um pequeno Kubota, conduzido despreparadamente, olhava os socalcos de soslaio, na certeza de nada se perder a quem sabe vir a esta vida para mais do que sobreviver.

Placidamente, no meu espelho retrovisor, da varanda do posto da guarda nacional republicana, o oficial sorria a cena na madrugadora ronda pelo vale de uma margem esquerda do Douro, quase esquecida, quase perdida. Não fosse o nevoeiro encontrá-la, pensaríamos tratar-se de mais um cais abandonado, ou um outro pintalgado de braseiras e construções de madeiras, mais ou menos exóticas, aquecidas pelos grelhadores onde tinham ficado encrustados as costas escamosas de uma voluntariosa sardinha. No zincado balde cai uma tesoura de poda e, ao fundo, o campanário responde com as metálicas badaladas que contam as horas passadas de um dia, cujos descontos não assomarão à porta da reforma.

O colorido ramalhete que se transforma a videira, recordava-me a figura da minha adolescência, tantas vezes encontrada debaixo de uma, a escanhoar os olhos para o dia amanhecido, como quem raspa as borras de um canteiro onde se aquece um café inexistente. E se a crónica não me puxa a razão, estaria ainda a esta hora a apreciar a conversa podada dos cachos que ficaram esquecidos, como almoços domingueiros em casas de povos, cordeiros.

Uma caneca metálica ergue-se e saúda-me a passagem, enquanto levanto a mão em saudação e o meu pai ri-se, na cadência infantil de viver mais de sete décadas inocentemente, quase infantilmente, por entre florestas de pessoas.

A vindima parece ter começado no momento que terminou ou, talvez, tenha apenas começado muito mais cedo do que a manhã fresca de sábado, entre Souselo e Moimenta. É que se o Sol se empertiga, ninguém aguenta.

De braços erguidos, a saudação desconhecida sabe-me a abraço morno, antes da feijoada tradicional, regadas com um carrascão tinto ou um espadal. Arranco sem nunca perder de vida a vindima para a qual nunca fui chamado e, agora, que não a fiz, nunca a conseguirei ter abandonado.

No regresso, na estrada, serpenteando ao ritmo da nublada e inclinada rota do abandono, vejo os montes sem dono e questiono-me se, nos revezes da vida, alguém terá feito da inexistente posse do que se pensa ter, nos cachos secos volvidos em lagar cimentado de cangaço, a sua própria vindima, o seu próprio cansaço.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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