Encostado ao ladrilhado falso de cimento armado os blocos unem-se na parede que segura os dias vazios e o frio esgueira-se por entre o telhado de zinco, sem reparar que a porta aberta convida qualquer um, inclusive a tristeza, a entrar e acolher-se ao sossego de uma madrugada fresca, agora que a Terra Quente esfria, modorrenta, à espera do Inverno.

No equilíbrio ténue dos dias avançados e sobre o funil azul, os dedos bolbosos de quem nasce da terra e sabe, por inerência do destino a quem se permite viver acima dos quotidianos mundanos, que à terra o seu torrão carnal voltará, seguram o cálice sagrado que acolhe o destilado, já depois da ascensão aquecida da caldeira e a queda condensada ao longo da serpentina de arrefecimento.

– Vai um copinho? Vai um copinho? – pergunta dupla, num eco mental que reverbera sem resposta habitual, depois da companheira de uma vida se ter despedido desta e ascendido, sem destilar, no calor que a todos nos levará, deixando para trás o aroma e odor que nos bebeu.

O ar bondoso na transparência que veste e o ambiente bucólico da autenticidade convidam. O silêncio entre as pingas no copo, antevê o ardor das pingas no corpo.

– Eu não quero… senão cai-me no estômago… – a resposta sorridente de quem o carinho refresca na terra quente.

O riso de ambos bebe-se de um trago só. Há um conversar murmurado, talvez no respeito da partida recente da esposa, um sorriso lacrimado que transpira sob o chapéu de abas azul e um frescor pouco habitual, da falta de outro torso, que evapora debaixo do casaco de malha castanho. Visto por apenas um par de olhos, o mundo é um local estranho.

A ciência milenar de saber extrair da Natureza tudo o que não nos lesa, colhe-se gota a gota numa qualquer manhã ensolarada, fresca, de um interior transmontano. Ou qualquer outro local onde, literalmente, resida a interior beleza de quem procura voltar aos tempos de acompanhado, mas a vida encarrega-se de destilar cada um nas suas madrugadas estreladas, em qualquer barraco cabe um alambique, modernizado na pigmentação do que nos ornamenta.

Após o cálice encher, o transbordado cai no funil e continua viagem liquefeita até o garrafão. Há uma resistência fora da lei, prevaricadora dos costumes modernos que teimam em mecanizar o artesanato.

O toque nos lábios arde numa boca calada. Sorve-se de olhos fechados o que nos falta de caminho, o calor dos bicos do artesanal bico fogueado aquecerá as gotas de coragem libertária, ajudando à digestão vaga de uma vida que pinga solitária.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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