Eu fiz nascer uma vida.
Veio a gritar de dentro de mim
e, como uma divindade azteca,
exige o meu sacrifício.
Inclino-me sobre a pequena boneca
e olhamo-nos nos olhos.
Não vais tirar-me o melhor de mim.
Não serei a casca
do ovo que vais rachar,
quando irromperes no mundo,
nem o passadiço que vais atravessar
para chegares à tua vida.
Eu vou-me defender.
Inclino-me sobre a pequena boneca
e noto
um ligeiro movimento num dedo minúsculo,
que não há muito tempo estava dentro de mim,
e sob cuja delicada pele
flui o meu próprio sangue.
Acabo por ser arrastada
por uma onda imponente
de humildade.
Desamparada, afogo-me.
É a mim mesma que adoro,
no fruto do meu próprio corpo?
Estou-me a sacrificar
ao deus canibal do instinto?
Onde vou convocar a força para lhe resistir,
fraco como é?
A pequena boneca precisa de mim,
tanto quanto precisa de ar.
Submeto-me voluntariamente
a ser engolida pelo amor.
Submeto-me a ser engolida como ar,
pelos seus pequenos e ávidos pulmões.
tradução de Jorge Sousa Braga