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Jorge Sousa Braga (1957)

Jorge Sousa Braga (1957)

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14.
LITANIA

Estava sentado numa sala anexa ao bloco operatório
e uma enfermeira passou com o teu útero num saco de plástico transparente
Com o teu útero com a minha primeira casa e a de meus irmãos
ainda escorrendo sangue
Uma pequena construção toda em pedra
com divisões de tijolo e cal hidráulica
e janelas abrindo para o vale
Com o teu útero
Com a memória do pão depois de levedado e da tua saia comprida cheia de farinha
Com a memória de uma gema de ovo
Com o teu útero
Com a memória de uns sapatos demasiado apertados
Com a memória do giz e do ferro a carvão e dos alinhavos
Na minha alma antes de ser posta à prova
Com o teu útero
Com a memória de uma véspera de Natal das rabanadas e da aletria
E das águas que de súbito inundaram o soalho da cozinha
Com a memória agitada dessas águas
Com o teu útero
Com a memória de uma explosão de mimosas
Com a memória do cheiro a flor de laranjeira e a neroli
Com o teu útero
Que o anátomo-patologista dentro em pouco se encarregaria de retalhar
com a lâmina do bisturi

por Jorge Sousa Braga in O poeta nu, Assírio & Alvim, 2.ª edição, abril 2014, página 232 

 

13.
MANTA ROTA

Quem atravessa o passadiço
vindo do mar dificilmente se
apercebe entre o estorno
o cardo e as perpétuas
das areias do piorno branco
quase a florir    Há quem
prefira o território da
sombra    quem quase peça
desculpa por existir

in A matéria escura e outros poemas, Assírio & Alvim, março 2020, página 33

12.
A ÚLTIMA CEIA

Havia mais doze lugares à mesa e estavas sozinho
Uns não puderam aparecer porque houve greve dos comboios
outros porque havia actividades da empresa que não podiam descurar
outros ainda porque aproveitaram as férias para relaxar uns dias em Cancum
Não tinhas ninguém que te pudesse trair
não tinhas ninguém que te pudesse escutar a dizer Ecce Hommo
Comeste em silêncio uma sopa instantânea de lentilhas
e foste-te deitar
Amanhã continuarás vivo
Não terás de te dar ao trabalho de ressuscitares
e ascenderes ao céu
apenas de continuares a carregar
a tua pesada cruz
quotidiana

In Matéria Escura publicado pelo autor 

11.
DIÓSPIROS

Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder

in O poeta nu (O segredo da púrpura), Assírio & Alvim, 2.ª edição, abril de 2014, pag. 153

10.
INCUBADORA

Era tão pequena a mão que
nem o seu dedo mendinho

conseguia agarrar. Pesava
quinhentos gramas e respirava

sem ajuda do ventilador
O coração da sua mãe quase

que não batia com receio de
que ele sufocasse sob o peso

do seu amor

in O poeta nu, Assírio & Alvim, 2.ª edição, abril de 2014, página 242

9.
DUNAS

Conhece-os bem os narcisos
E os cardos roladores com as
suas inflorescências azuis quem
anda pelas dunas ao fim da tarde
Enterram fundo as raízes na
areia e florescem florescem
enquanto à volta tudo arde. 

8.
por todo o lado explodem
os agapantos… É como se fosse
um fogo-de-artifício rente
ao chão como se inteiros
os dias te explodissem na mão. 

7.
Com água no bico
aves marinhas combatem
o incêndio do crepúsculo 

6.
Nenhuma outra cidade
se oferece assim a quem chega

como uma cadela permanen-
temente com cio 

5.
Sete da manhã
O sol acorda
com olheiras enormes 

4.
Ninguém é tão avesso
a margens
como o mar 

3.
Há um livro que nunca chegarás
a ler um livro que te escapou 

2.
Que luta é esta
com que noite e dia
o mar se digladia? 

1.
Sou uma erva daninha.
Nem princesa, nem rainha. 

Poeta e médico português, Jorge de Sousa Braga nasceu a 23 de dezembro de 1957, em Cervães, no concelho de Vila Verde. Após ter completado os estudos básicos e liceais em Viana do Castelo e em Braga, ingressou na faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Concluiu o curso em 1981, tendo-se especializado em Obstetrícia/Ginecologia, e iniciou a sua carreira profissional no Hospital de Santo António, no Porto. Já casado e pai de dois filhos, dedicou-se posteriormente ao estudo e à consulta de casos de esterilidade/infertilidade.Desde muito cedo sentiu-se impelido para a poesia – tinha apenas oito anos quando escreveu o seu primeiro poema, uma espécie de homenagem ao então futebolista Eusébio, um dos seus ídolos de infância e representante, na altura, do Sport Lisboa e Benfica, clube de que sempre foi adepto. Seria, no entanto, a partir dos 14 anos que o autor começaria a escrever consciente de que a poesia começara já a fazer parte, de forma intrínseca, da sua vida.

Jorge de Sousa Braga pertence à geração dos poetas da pós-revolução, revelando uma habilidade inata na construção poética, que, embora fecunda em cadências vivas, não se submete à rigidez de um esquema métrico. Na sua escrita destacam-se expressões simples e quotidianas, revestidas de um profundo sentimento de ternura – por vezes também de desalento -, combinadas com notas de acentuada ironia ou de intensa sensualidade/intimidade. É notória, em toda a sua produção literária, uma instintiva aproximação aos elementos da Natureza.

Leitor impulsivo de poesia, o seu trabalho como autor manifesta-se também nas várias traduções que tem feito, assim como nas antologias de que é responsável, considerando-as como o resultado de um apaixonante exercício de transmutação.

Frequentemente convidado para participar em eventos de índole cultural e/ou literária, apresenta, na sua bibliografia de originais, os seguintes títulos: De manhã vamos todos acordar com uma pérola no cu, Fenda, 1981; Plano para salvar Veneza, Fenda, 1981; A greve dos controladores do voo, Fenda, 1984; Boca do Inferno, Gota de Água, 1987; Os pés luminosos, Centelha, 1987; Fogo sobre fogo, Fenda, 1998; O poeta nu (poemas reunidos), Fenda, 1991 e 1999; Herbário, Assírio e Alvim, 1999, distinguido com o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura Infantil; Balas de pólen (antologia), Quasi Edições, 2001; A ferida aberta, Assírio e Alvim, 2001; Pó de estrelas, Assírio e Alvim, 2004; Porto de abrigo, Assírio e Alvim, 2005.

Relativamente a versões e antologias, destacam-se: Museu e outros poemas, Fenda, 1982; Filhos da neve (em colab.), de Leonard Cohen, Assírio e Alvim, 1985; O bosque sagrado (em colab.), Gota de Água, 1986; O gosto solitário do orvalho, de Matsuo Bashô, Assírio e Alvim, 1986; Sono de Primavera (poemas chineses), Litoral, 1987; O caminho estreito…, de Matsuo Bashô, Fenda, 1987 e 1995; O século das nuvens, de Guillaume Apollinaire, Hiena Editora, 1987; O vinho e as rosas, Assírio e Alvim, 1995; A religião do girassol, Assírio e Alvim, 2000; Poemas com asas, Assírio e Alvim, 2001; Primeira neve, Assírio e Alvim, 2002; Qual é a minha ou a tua língua, Assírio e Alvim, 2003; Os cinquenta poemas do amor furtivo e outros poemas eróticos da Índia antiga, Assírio e Alvim, 2004; Animal Animal – um bestiário poético, Assírio e Alvim, 2005.

Sito in http://www.infopedia.pt/

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