O BALCÃO tem alguns pontos um pouco pegajosos, talvez do hábito de rasparem o platinado que separa a sorte do azar, dos fundos dos copos de fino ou dos sujos. A mão grande, calosa, seivosa, aberta como uma ruga imensa no negro granito, bate uma única vez como o vociferado pregão, respeitoso e respeitador. Eu tomava o café sem pressas, virando-me lentamente como se algo na televisão me interessasse, apenas para os ver. A dupla septuagenária com setentas dos antigos, onde os anos curvados valiam como uma arrastada enxada no final da tarde, quando as leiras se recolhiam e os repolhos aspiravam o fresco final do dia e do postigo, ao longe, se ouvia o debulhado chamado da patroa, aquecido pelo caldo de nabos (e aqui a ficção recolhe-se para dar passagem à degustação do cronicador). Setenta destes valem-me oitenta no tempo quente e um centenário fresco nas tarde curtas do Inverno.
A boina no cabide, a cabeça alva, as mãos dentro do casaco negro e os ombros encolhidos, como uma resposta sempre presente à própria vida, um bom e velho – Que se foda e me desculpem a língua – Ria-se, obviamente, a clientela. Já o conhecem pelo feitio rombudo e para aquecer o ambiente lá lhe lançam o desafio de responder a coisas sem resposta, como quando lhe falam sobre o futebol, a política, o tempo e as demais futilidades.
– Decidam-se sobre o que se querem queixar e deixem-me em paz. – Em pé, sobre a grade de alumínio que separa o patamar azulejado onde se sentam as pequenas famílias ao domingo, lê as gordas e negras letras do jornal que outro velho desfolha. Acaba-se a leitura, o jornal não se fecha para não se perder a vez, é passado de mão para mão como o testemunho da curiosidade de saber o que andou o mundo a fazer no dia anterior. Foi assim que aprendi, pela voz dele, que “notícias de hoje só quando o sino toca e avisa que alguém morreu, as outras já nos chegam depois de meia volta ao mundo”.
Uma vez, apenas uma, antes de ter o jornal na mão, a voz roufenha para disfarçar o embaraço diz – Empresta-me os teus óculos, deixei os meus em casa. – Num encorrilhar do nariz, com as hastes metálicas estranhando a face, deitou o olhar rápido para a necrologia franzindo os sobrolhos para adaptar as letras na córnea e num instante ficou a saber quem ontem, sem que o sino avisasse, tinha morrido. E, assim, fica-se mais vivo, porque “os outros foram, mas eu não”, paga o pingo, pisca-me o olho e “vou ver o que a patroa meteu no caldo”. Quando coloca a boina sobre os ralos cabelos grisalhos não consigo deixar de pensar no quão perto também ele está daquela página do jornal.
Já de costas, antes de fechar a porta castanha do café, larga o tradicional
– Até já!
Passados dias ouço o sino, olho o relógio, não eram horas certas por isso representava apenas que a morte tinha chegado e na sua exatidão bramia a campânula deixando cair pétalas de ferrugem. Na mesma tarde, retomo o café e sei-o, porque o sino repenica mas não fala, tinha morrido aquele que pediu óculos para ver quem tinha morrido e como se pudesse ouvi-lo rir e vociferar por certamente não ter direito a caldo de nabos, nem precisar de óculos para ver que estava morto, pisco o olho para o vazio e digo-lhe também
– Até já!
SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.