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Jorge Pinheiro, 86 anos

Jorge Pinheiro, 86 anos

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AO abrir a porta do espaço onde trabalha, Jorge Pinheiro comenta: «Está aqui um frio de rachar pedras». Com exposições na Fundação Carmona e Costa (Lisboa), no Museu Amadeo de Souza Cardoso (Amarante) e na Fundação de Serralves (até 7 de Janeiro), nos últimos meses tem-lhe sobrado pouco tempo para se dedicar à pintura. E o ateliê, que ocupa umas águas-furtadas por cima do apartamento que habita, tem estado fechado.

No piso de baixo o ambiente está mais convidativo. Na sala de estar, repleta de álbuns de arte, mas também dos mais recentes lançamentos, a música cala-se quando entramos («Estas sonatas do Beethoven são de uma grande doçura», diz-nos o artista) e permite ouvir em pano de fundo o tiquetaque constante de um relógio de pêndulo.

Nascido em Coimbra em 1931, Jorge Pinheiro licenciou-se em Pintura na Escola de Belas-Artes do Porto. Fez parte do Grupo dos Quatro Vintes, formado por quatro alunos (além dele, Ângelo de Sousa, Armando Alves e José Rodrigues) que terminaram o curso com 20 valores. Na década de 60, viajou pela Europa com uma bolsa da Gulbenkian e absorveu influências que se revelariam decisivas.

Ao longo do seu percurso, Jorge Pinheiro tem oscilado sempre entre a pintura figurativa e a pintura abstrata. Nas paredes da sua sala de estar encontram-se representadas ambas as facetas. De um lado, uma pintura abstrata baseada na sequência de Fibonacci, considerado o primeiro grande matemático europeu da Idade Média. Do outro lado, perto da mesa de jantar, uma obra realista que representa o conflito interior de um guarda republicano incumbido de expulsar das terras pessoas da sua condição social, durante a Reforma Agrária. Afinal, resume, é isso que o inspira: «A vida lá fora a dar murros na porta».

Terminou a sua licenciatura em 1963. Segundo as minhas contas já teria 31 ou 32 anos.

Sim, sim.

O que andou a fazer antes para acabar tão tarde?

Acabei tão tarde porque primeiro fiz um curso comercial que não me serviu de nada. E quando acabei aquilo fui fazer Belas-Artes. Só que nessa altura só se entrava para Belas-Artes com o liceu e não com o curso comercial. De maneira que tive de fazer o liceu todo de ponta a ponta e pelo meio ainda se meteu a tropa.

Fez esse curso comercial por imposição familiar?

[conformado] O meu pai pôs-me lá. E eu odiava a contabilidade.

Já era claro para si que queria ser pintor?

Não. Gostava de fazer bonecos, mas ser pintor era uma coisa que não me passava muito pela cabeça. Agora, desde miúdo que desenhava e pintava muito. Nem me lembro sequer de não o fazer.

E desenhava bem?

Desenhava como uma criança. Mais tarde, na escola onde fiz esse curso comercial havia uma cadeira desgarrada de ‘Composição e Ornato’. Era só eu e o professor – um professor extremamente académico, mas não me fez mal nenhum, desenhei tudo e mais alguma coisa. Foi uma grande experiência.

E nas Belas-Artes teve bons professores?

Fiz o primeiro e o segundo ano em Lisboa, e o ensino era profundamente académico. Profundamente académico, extremamente repressivo, detestava aquilo e fui-me embora para o Porto, onde era o oposto.

Era mais livre?

Tinha como diretor o famosíssimo arquiteto Carlos Ramos, que foi um homem que criou uma geração de ouro da arquitetura. O Távora, o Siza, o Alcino Soutinho, toda essa gente se formou no tempo do arquiteto Carlos Ramos. Era um homem que tinha uma abertura enormíssima para a modernidade – o oposto da Escola de Lisboa.

Acabou o curso com 20 valores. Foi por ser muito talentoso, por ser muito aplicado ou por os professores gostarem de si?

Não foi uma habilidade muito grande, porque houve uma inflação das notas, e quer na Pintura, quer na Escultura, quer na Arquitetura houve vários vintes. Como era difícil naquele tempo nós dizermos em termos profissionais ‘estamos aqui’, fizemos um pequenino marketing que foi o Grupo dos Quatro Vintes. E jogámos ironicamente com os 20 valores exatamente porque foi uma situação dúplice: por um lado ter vinte era um grande prestígio, mas por outro lado não era prestígio nenhum porque houve vários.

Em todo o caso presumo que fosse um excelente aluno.

Claro que não era um mau aluno. Dos quatro que fizemos esse grupo só existo eu e o Armando Alves, o Ângelo de Sousa já morreu e o José Rodrigues também.

E os outros alunos não se sentiam afrontados por vocês se designarem Os Quatro Vintes?

Não. Se calhar toda a gente diz ‘na minha geração é que era porreiro’, mas a verdade é que a escola era pequena, a camaradagem era excelente, nós éramos novos e não tínhamos problemas na vida, portanto era tudo cor-de-rosa.

Tinham uma boa vida?

Sim, divertíamo-nos, tínhamos boa camaradagem, éramos novos e isso basta. Mas o lado político era bem negro. Um dia a PIDE entrou por aquela escola adentro e sabíamos quantos colegas foram presos e torturados.

Mas podiam pintar o que quisessem, ou havia alguma arte proibida?

Quando fugi da escola de Lisboa não se podia fazer pintura abstrata – imagine. Isto nos anos 50. Os alunos tinham de fazer pintura figurativa. No Porto tínhamos completa liberdade de pintar aquilo que nos apetecesse.

Quando é que descobriu a pintura abstrata?

A primeira coisa abstrata que fiz estava em Amesterdão com uma bolsa da Gulbenkian. O Stedelijk Museum tinha um diretor formidável que fazia umas exposições durante um período curto mas com um caráter extremamente didático. Aprendi imenso nessas exposições. E não sei como, fiz um croqui de uma peça pequena. Quando cheguei a Lisboa, no fim dessa bolsa, executei isso em madeira, que intitulei Homenagem a Amesterdão. Foi a primeira peça não figurativa que eu fiz.

Lá em Amesterdão viu o quê? Obras do Piet Mondrian, por exemplo?

Sim, Mondrian, claro, toda essa gente, mas interessei-me muito pelos construtivistas russos. Vi uma exposição grande do Malevich. Esses fulanos tocaram-me profundamente pela novidade daquilo.

Mas porquê? O Malevich tem pinturas que são só um quadrado preto ou um quadrado branco…

Pois, esse ‘só’ é que para mim foi totalmente novo. ‘Só’ um quadrado branco ou ‘só’ não sei quê. Foi esse ‘só’ que me despertou na altura.

Penso que era a Menez que dizia que quando estava feliz fazia pintura abstrata e quando estava infeliz – e teve mais de uma tragédia na sua vida – fazia pintura figurativa. Isso faz sentido para si?

Como eu a compreendo! É óbvio: a imagem veicula aquilo que a pintura abstrata não pode veicular. A imagem tem uma capacidade imensa, muito próxima da palavra. Portanto compreendo perfeitamente que ela dissesse isso, porque há coisas que se podem transmitir através de uma imagem que não podem exprimir através de uma pintura com pontos e linhas.

Muitas pessoas, quando olham para uma pintura abstrata, perguntam-se: ‘O que é que aqueles traços querem dizer, o que é que aqueles pontos querem dizer?’. Estas pinturas abstratas representam alguma coisa para além de si próprias?

Hoje ouço menos vezes: ‘Mas o que é que isto quer dizer?’. As pessoas já aceitam melhor uma coisa que – entre aspas – não quer dizer nada.

O que costumava responder a isso?

É um embaraço enorme. Uma pessoa que faz uma pergunta destas não tem capacidade para encaixar uma resposta a sério. Não sabe rigorosamente nada, portanto tem de se explicar de outra maneira.

É como aquelas perguntas das crianças que nos deixam desarmados?

Exatamente. O meu irmão às vezes perguntava ao meu pai: ‘Quem é que segura a Lua?’. Ora, como é que se responde a isto? Aqui é a mesma coisa: ‘O que é que isto quer dizer?’. ‘Não quer dizer nada’. ‘Mas então para que é que faz uma coisa que não quer dizer nada?!’. [risos] Uma imagem [figurativa] é geradora de sentidos. Um ponto e uma linha, pelo contrário, são elementos com a conotação mais débil possível. Aí, espero que depois as coisas funcionem pela estrutura. Há muitos anos fiz um álbum que se chamava ‘15 Variações sobre um tema ou Pitágoras jogando xadrez com Marcel Duchamp’. [Vai buscar o álbum e mostra algumas gravuras] Aqui eu não ia procurar um conceito de belo – considerava que o número, a proporção, era bela em si mesmo. Não vou recorrer a um belo que esteja codificado anteriormente, mas o que me surgir eu aceito como belo. A Vieira da Silva falava em ‘aceitar o que a tela nos dá’. No fundo não anda longe disto.

Há um autor norte-americano, o Arthur Danto, que fala na kalophobia, ou seja, o horror à beleza que se verifica em muita arte do século XX. Houve uma époça em que os artistas perseguiam o belo e hoje praticamente repudiam o belo, porque acham que a arte não tem de ser bela. Interessa-lhe que as suas pinturas sejam belas?

Essa foi uma onda dos anos 80, da negação do conceito de beleza. Eu não sou filho daí, sou mais antigo. O meu raciocínio ainda vem do raciocínio do Renascimento, que radica na proporção e passa por toda aquela gente como o Corbusier. Se alguma raiz eu tenho é a da organização das artes segundo o número, a proporção, o ritmo, alicerçado na beleza do conceito grego de arte.

Por falar nisso, qual é a sua relação com a arte do passado? Aqui na sua sala de estar tem muitos livros de história da arte…

Tenho 40 anos de ensino, tive de estudar, como é evidente. A história da arte era indispensável como professor, e indispensável como pintor, também. É tão óbvio… tão evidente que nem sei explicar. É como um escritor, que primeiro tem que aprender a ler.

Mas no princípio do século XX, sobretudo, houve muitos artistas que renegavam a arte antiga e queriam destruir e queimar museus…

Conversa… Nos anos 80 houve um movimento chamado Bad Painting [Má Pintura], em que havia uma grande displicência no fazer. A Bad Painting não era tão bad quanto isso, mas havia alguns jovens que levavam isso à letra e então faziam o mais bad possível e depois punham as telas arrumadas a um canto, displicentemente. Era uma moda, claro que não podia levar a nada. Se fossem para arquitetura, por exemplo, faziam uma casa que ao fim de algum tempo caía heroicamente? Não faz sentido.

Há pouco mostrou-me o seu ateliê, onde tem as coisas limpas e organizadas. É uma pessoa meticulosa?

Tenho de ter uma certa ordem na minha vida. Agora vivo sozinho, tenho muitas obrigações na minha vida, e se não ponho uma ordem nas coisas é um sarilho.

Nas suas pinturas também procura essa ordem?

Aí sou obsessivamente ordenado. Aliás vê-se, não é? [aponta para uma pintura sua na parede] Esta é da série do Fibonacci, por acaso.

Como nasce uma pintura sua?

Boa pergunta. Sabe-se lá…

É um impulso?

Diria a filosofia: ‘É a necessidade interior’. Não se sabe. Eu não sei. São tantas coisas, não vou começar a especular sobre isso. É como quem escreve. Você está tranquilamente sentado a tomar café. Ou está deitadinho na cama e dá um salto e vai escrever, para não se perder. Porque é que aconteceu? Aconteceu, não sabe porquê.

Quando começa uma tela tem um plano?

Quando vem o plano é porque já houve um primeiro click que me levou ao primeiro gesto, que é a tal coisa que a gente não sabe porque é que surgiu. Depois há todo o conhecimento que temos e que pomos ao serviço daquela fagulha. Isso é tão difícil, tão subjetivo… Tem de perguntar ao António Damásio. [risos]

Tem a sensação de que a tela às vezes sai melhor e outras vezes pior?

Não tenho a menor dúvida. E quantas vezes vai para o lixo.

Deita muita coisa fora?

Evidentemente. Quem dera que a gente produzisse só obras-primas. Era uma maravilha!

Disse-me que ultimamente não tem trabalhado. Há alguma razão?

Nos últimos dois ou três meses foi a exposição de Serralves, a exposição da [fundação] Carmona e Costa, a exposição de Amarante, por isso é que não tenho trabalhado no ateliê, ando à volta com essas coisas.

Para trabalhar no ateliê tem de ter um certo…

Uma certa paz de espírito. Que nem sempre se consegue. A gente vai para ali e tem de estar disponível e esquecer-se. Ponho uma música – gosto muito de trabalhar com música – e esqueço-me que tenho outras obrigações. O que é difícil.

É por isso que faz questão de ter a casa separada do ateliê e que pediu ao empreiteiro para tapar a ligação que existia entre as duas?

Pois, para estar lá em cima sossegado.

Há pouco falávamos do mistério da criação. Há coisas que o inspiram? Ouvir uma música, por exemplo?

O que é que me inspira? Parece muito uma frase feita, mas o que me inspira é a vida. A vida lá fora a dar murros na porta, como diz o poeta. Os problemas da vida.

O quê, mais concretamente? Ver as crianças a brincar na praia? Ouvir o noticiário?

Aquele quadro que vê naquela parede é o conflito do guarda republicano e do camponês. Em determinada altura, a seguir ao 25 de Abril, houve ocupações de terras no Alentejo, e depois houve desocupações. Durante as desocupações houve alguns conflitos e a GNR até matou dois camponeses. O que eu pretendia com aquele quadro era representar o confronto em que o camponês está tranquilamente sentado olhando para o guarda que, constrangidamente, não olha para o outro. Tudo isto em torno do problema do pão que está em cima da mesa. E há uma luz que os une, que atravessa a tela de um ponto ao outro. Quando me pergunta o que é que me serve para pintar, às vezes é a realidade, é o mundo, é a vida. Neste caso é um problema social complexo, podia ser uma situação amorosa ou coisa parecida, ao passo que neste caso [aponta para outro quadro] é uma coisa abstrata, é um jogo de formas, de cores, de linhas.

Quando não está a pintar o que gosta de fazer?

Apesar da minha idade tenho tanto que fazer, nem calcula…

Coisas aborrecidas ou de que gosta?

Obrigações várias. Muitas, muitas. Claro que também passeio, como toda a gente, também ouço música, também vou ao cinema, essas coisas. Gosto de trabalhar no ateliê e tudo isso, é uma atividade profundamente catártica, mas o que mais gostei de fazer na vida foi o ensino, o ensino é que me encheu as medidas. O convívio com os alunos, com gente nova, cheia de vivacidade e de vida, que maravilha!

Também se aprende muito com os alunos?

Todos os dias. O que a gente aprende com as crianças é uma coisa espantosa. No ensino preparatório havia o chamado desenho subjetivo espontâneo, em que o professor motivava a criança para o seu quotidiano. ‘Hoje vamos falar da tua casa, da tua família’, e os miúdos faziam um desenho daquilo. Tive um aluno que fazia desenhos formidáveis. Devia ser profundamente feliz porque a casa que ele representou era acolhedora, uma coisa fantástica, ainda por cima havia uma janela e chovia lá fora. Eu devia ter ficado com aquele desenho! Aprendi muito nesses três anos com o ciclo preparatório, e depois ao longo da vida com alunos formidáveis que tive.

Esses alunos mais talentosos triunfaram?

Alguns casaram, tiveram filhos e deixaram de pintar, outros foram dar aulas para longe. Neste ofício das artes sobreviver é muito difícil. É preciso sorte e muito trabalho, mas sobretudo sorte na vida. Pode ter muito jeito, mas se não tem possibilidade de mostrar, acabou.

Por José Cabrita Saraiva publicado in SOL

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