A REALIZAÇÃO dos primeiros jogos olímpicos na América do Sul na cidade do Rio de Janeiro está associada a um poder simbólico recentemente adquirido pelo Brasil, reconhecido hoje como uma potência geopolítica no seio da comunidade internacional. A cerimónia de abertura do Rio 2016 foi uma celebração da identidade brasileira, da sua diversidade e das suas contradições: entre escravos e capatazes, caravelas e rodas de engenho, índígenas e colonos, o aquecimento global mereceu voz em off perante milhões de espectadores embasbacados. A receita funcionou como uma bossa nova balançando o funk: como não ceder à emoção do espetáculo aliada à razão da grande causa global do século XXI? Afinal, desde a Convenção sobre Mudança do Clima assinada em 1992, a bandeira das mudanças climáticas passou a fazer parte do vocabulário de governadores, prefeitos e vereadores um pouco por todo o Brasil. Agora, no rescaldo da euforia que invadiu a cidade carioca nos 16 dias dos jogos, é tempo de fazer um balanço das metas ambientais estabelecidas para estas olimpíadas.

No que respeita aos compromissos formalmente assumidos pelo governo brasileiro para reduzir as suas emissões de Gases de Efeito de Estufa (GEE), o Estado do Rio de Janeiro aprovou em 2010 a sua Política Estadual sobre Mudança do Clima e Desenvolvimento Sustentável (Lei Estadual 5690/2010). No ano seguinte o Governador Sérgio Cabral assinou o Decreto 43216/2011, que estabelece metas concretas de redução de emissões de GEE. O problema é que este decreto, como muitas outras leis aprovadas no Brasil, “não pegou”. Os dados oficiais do Observatório do Clima revelam que as emissões de CO2e no Estado do Rio de Janeiro duplicaram no período entre 2005 e 2015. Este dado por si só revela a discrepância entre a cidade imaginária e a cidade real: enquanto a meta do governo para 2030 pretendia reduzir as emissões de GEE abaixo dos níveis registados em 2005, estes valores representam em 2016 o dobro das emissões relativamente ao marco estabelecido, passados apenas cinco anos do decreto assinado.

O caso do Rio de Janeiro não é uma exceção aos restantes estados brasileiros. Considerando apenas os dados da mesma fonte para os anos de 2012 e 2013 por exemplo, as emissões de carbono no Brasil aumentaram 7,8%. Para destrinchar estes dados de modo a compreender o contexto de emissões de GEE no Brasil, é necessário discernir as emissões provenientes do desmatamento, ainda responsáveis pelo maior volume de emissões globais, das que resultam das restantes atividades económicas. Enquanto as emissões derivadas do desmatamento apresentam grandes variações ao longo do tempo, com reduções muito significativas a partir do ano 2000, no caso da energia, agropecuária, indústria e resíduos, as emissões têm crescido consistentemente desde os anos 1970 até hoje. Entre 1990 e 2013, o setor de energia apresenta as maiores taxas de emissões globais, com um aumento de 103%, seguido por atividades industriais (93%), resíduos (68%) e agropecuária (46%). Num horizonte temporal mais amplo, entre 1970 e 2013, houve um aumento de quase 300% nas emissões de GEE do setor energético. Em 2012, as emissões de GEE provenientes do setor energético excedeu as emissões da agropecuária pela primeira vez, e a diferença aumentou ainda mais em 2013. Ao considerar as emissões líquidas, a energia já é a principal fonte de gases de efeito estufa no Brasil em 39% das emissões, seguida pela agropecuária em 36%.

Os atuais impasses políticos nesta matéria evidenciam a persistência do conflito entre interesses corporativos fortemente representados no aparelho de Estado, e valores socioambientais de difícil conciliação com as atuais políticas energéticas brasileiras. A estratégia do Ministério de Minas e Energia permanece focada na venda de concessões a capital estrangeiro para exploração do petróleo do pré-sal, a entrega de concessões privadas para a construção e operação de usinas nucleares, e a contrução de termoelétricas e hidroelétricas de grande porte na Amazônia (como a recém construída mega-usina de Belo Monte no Rio Xingu e o projeto para a construção da usina de São Luiz no Rio Tapajós).

Uma falácia recorrente em análises da matriz energética brasileira, é a contenção de que o Brasil baseia a sua produção em energias renováveis, considerando que 70% da energia elétrica é proveniente de hidroelétricas. Frequentemente, dados relativos à matriz elétrica são confundidos com dados relativos à energia no seu todo. Segundo o Relatório oficial de Minas de Energia de 2015, a oferta interna de energia  é altamente dependente de combustíveis fósseis, na qual o petróleo representa 39,5% e o carvão e gás contribuem com 27,5 %. As monoculturas de cana de açucar, responsáveis por uma grande parte do desmatamento e perda de biodiversidade no Brasil, contribuem com cerca de 16%, a energia hidroelétrica 11 %, e as usinas nucleares cerca de 1,3%. No cômputo geral, a geração de energia eólica concentrada no Nordeste brasileiro é a migalha na mesa da matriz energética brasileira, e a energia solar nem figura nas estatísticas. No que respeita a investigação tecnológica, segundo um estudo do IPEA, o governo brasileiro investiu menos de 0,0013% do seu PIB anual na pesquisa de energias renováveis entre 1999 e 2012.

Juntamente com a China e a Índia, o governo brasileiro tem  sido particularmente vocal na discussão sobre a equidade entre países “desenvolvidos” e países “em desenvolvimento”, argumentando que o aquecimento do planeta foi provocado pelos países industrializados. Enquanto este debate tende a se perder na identificação espúria de culpados e vítimas do aquecimento global, os BRICs são já os campeões do crescimento anual de emissões de carbono no mundo, sendo a China o maior responsável pelas emissões de carbono em termos absolutos por ano (30% do total), superando as emissões da Comunidade Europeia per capita. Neste triste campeonato dos países que mais poluem o planeta, o Brasil levaria em 2005 a medalha de bronze, ocupando a terceira posição entre os maiores emissores globais de GEE em 2005, atrás apenas da China e dos EUA [1].

No plano doméstico, o debate público sobre a exploração do pré-sal tem sido marcado por egoísmos locais e nacionais. Quando o barril de petróleo estava a USD$160, as opiniões dividiam-se na discussão sobre a repartição de recursos entre os diferentes estados. No Rio de Janeiro este debate foi extremamente disputado, reclamando as receitas provenientes do pré-sal na sua área marítima para os cofres do estado. Mais recentemente, quando o barril de petróleo atingiu USD$46,5 e com a Petrobrás abalada com os escândalos de corrupção denunciados pela operação Lava-Jato, as receitas federais provenientes do pré-sal para investimento público em saúde e educação são hoje uma incógnita de duvidoso porvir. Entretanto, a entrega de concessões do Campo de Libra a empresas estrangeiras tem sido criticada pela opinião pública, no âmbito do marco regulatório de partilha de produção. Enquanto o debate público fica delimitado a quem vai explorar o quê e quem vai beneficiar do quê, são ignoradas questões éticas e ecológicas mais profundas: por quanto tempo será sustentável manter a exploração de recursos fósseis no novo milénio? Será que o Brasil pode encontrar um caminho de emancipação social e económica sem uma política de transição para fontes de energia renováveis?

Para além das incertezas quanto à viabilidade económica de extração de petróleo em águas profundas face às recentes flutuações do seu valor de mercado, é do conhecimento geral que a verdadeira inovação para um futuro sustentável no planeta não está na exploração de hidrocarbonetos. Relativamente aos riscos ambientais associados à exploração intensiva de petróleo e gás natural, tal como no caso dos carvões e da energia nuclear, é preocupante a ausência de um debate sério sobre possíveis derramamentos de crude tais como ocorreram no Golfo do Mexico, ou acidentes nucleares como o de Fukoshima, entre muitos outras catástrofes ambientais que poderiam ser aqui citadas. Quanto ao potencial hídrico brasileiro e a produção de energia a partir do bagaço de cana, é necessário desenvolver uma maior sensibilidade às particularidades do território, especialmente quando este potencial se encontra concentrado em áreas naturais  extremamente vulneráveis a ações antrópicas de grande impacto, com enormes prejuízos socioambientais de longo prazo, ferindo direitos de povos indígenas e agravando os alarmantes índices de desmatamento, seja por queimadas, extenção da fronteira agrícola ou expansão urbana descontrolada em muitas áreas peri-urbanas.

A potência económica e social do Brasil reafirmada nestas Olimpíadas, apresenta-se hoje aos olhos do mundo com uma fratura exposta da sua identidade nacional. Essa identidade tão belamente cantada por Paulinho da Viola na cerimónia de inauguração, como um samba triste, um choro magoado, e um brilho de esperança no sonho de outros Brasis. Uma fratura entre a imagem projetada ao mundo através de tratados, políticas, relatórios oficiais e espetáculos mediáticos e as contradições de carácter negacionista das sua agenda de aceleração do crescimento, sustentada por uma matriz energética fortemente dependente de recursos fósseis. Tão negacionista como tantos outras nações do mundo dominadas por poderes hegemónicos apostados na valorização do preço do petróleo e no estímulo do setor nuclear para manter um sistema auto-destrutivo e auto-referenciado de produção pela produção e consumo pelo consumo. Um sistema que está nos antípodas da esperança de um Brasil que se quer diferente, apoiado na sua verdadeira riqueza cultural e humana, nessa visão erótica da vida que mais uma vez seduziu o mundo nestas olimpíadas.

Se o Brasil quiser realmente se afirmar como um campeão ambiental, terá que canalizar sua potência criativa para um modelo alternativo aos processos capitalistas depredatórios dominantes – uma economia regenerativa que priorize a inovação e a imaginação de novas formas de viver com qualidade, em vez de um crescimento meramente quantitativo que se esgota permanentemente a si mesmo. Para que o Brasil não reproduza cegamente os mesmos erros de uma visão colonialista de industrialização primitiva, terá que substituir o seu modelo energético baseado em mega-infraestruturas apoiadas por enormes redes de distribuição e desperdício de energia, por um modelo descentralizado de produção e consumo local, favorecendo a eficiência energética e a geração de energia em pequenas unidades de fontes diversificadas, como energia solar, eólicas, mini-hídricas e outras soluções inovadoras que já se afirmam como alternativas viáveis.

Num nível mais profundo, o problema político essencial não é criticar os conteúdos ideológicos que estão associados à depredação da natureza; mas saber se é possível constituir uma alternativa capaz de ultrapassar o atraso que representa a ideia de escavar as profundezas da terra para fazer uma roda girar. A esperança reside no potencial do exemplo de atletas como Rafaela Silva, que mostram ao mundo a capacidade do povo brasileiro se reinventar e superar as limitações impostas por uma circunstância historicamente crítica como esta que se vive hoje no Brasil – um país imenso com uma população proporcionalmente pequena em vias de estabilização demográfica, onde as possibilidades de adaptação do uso que fazemos da natureza são infinitas. Neste embate entre a descoberta dos limites impostos pelo planeta e a potência criativa de uma nação, não se trata apenas de advogar a substituição das atuais fontes de energia por soluções sustentáveis, mas de desafiar as formas sociais, económicas, culturais e simbólicas de hegemonia no interior das quais o atual modelo de desenvolvimento funciona no momento. Em suma, a questão política que está na discussão suscitada pelas mudanças climáticas no contexto brasileiro, não são as mentiras que alimentam o atual sistema alienante de extração unidireccional de recursos naturais, cuja insustentabilidade é evidente, mas é a própria ideia que o Brasil representa para todos os povos do planeta, enquanto possibilidade de libertação dos velhos paradigmas de dominação e domínio que asfixiam os seus verdadeiros valores e a sua real potência.

Texto de José Barbedo e ilustração de Dacosta

[1] Dados oficiais do terceiro inventário de emissões de GEE apresentadas pelo Governo Brasileiro à Convenção-Quadro do Clima das Nações Unidas (UNFCCC) em 20 de Abril de 2016. Segundo este relatório oficial, o Brasil poluiu 25% mais do que informava o segundo inventário.

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