NO centro do lugar da Torre, o dia começava a espairecer e a noite sucumbia lentamente ao golpe fatal da claridade que se levantava lá longe, como bola de fogo gigante, e prometia aquecer esta parte mais a sul do planeta, onde três rios fizeram bailados nocturnos.
Ainda mal se via e já o Zé Marques e a Maria Moleira amarravam a mula Andorinha, na argola de ferro presa na parede da venda da ti Albertina. Vieram lá de cima, das entranhas do monte onde os moinhos, movidos a energia hídrica, formam uma carreira nas margens do rio Mau, em Estivada de Baixo. Lugar perdido no enclave das serras das Banjas e da Boneca, de difícil acesso, e onde apenas mora o casal. Levantaram-se muito cedo, ainda com noite cerrada, e meteram-se ao caminho pelo meio da escuridão que mal deixava ver os contornos dos montes. E era pelo cantar das águas do ribeiro que corre lá ao fundo, que orientavam a caminhada.
Pelo carreiro suspenso nos barrancos que ladeiam o pequeno curso de água e lhe dão pitoresca margem até chegar à foz, seguiram em fila, os dois apeados. O Zé na frente, a mula imediatamente a seguir, a Maria atrás. O moleiro segurava presa nas mãos de pele castanha com manchas negras, a guita presa à cabeça do animal carregado com sacas de farinha de milho e de centeio. E marcava, em passo militar, a marcha e o destino das maquias. A noite perdia-se irremediavelmente na claridade do alvorecer, quando encaram com as primeiras casas do lugar. Casas rústicas, habitações de pobres construídas com os materiais da região: xisto nas paredes, lousa nos telhados e barro também a embelezar as vivendas que tinham, como travejamentos, madeira de pinho que cresce nas serras em redor, e no chão nu, terra da mesma de que é feito todo o planeta.
Com a calma característica dos velhos, livre das pressas da mocidade que já lhe ia longe, o Zé desapertou a sôga e o torniquete que seguravam os sacos que guardavam o pó e os prendia à barriga da muar e, um a um, carregou-os às costas, despejando-os na caixa de madeira posta a um canto, dentro da mercearia. A transacção começou a ser feita logo ali. Alguns fregueses, todos do sexo feminino com os filhos em redor ou ao colo, esperavam já ansiosos pela sua fornada.
O Marques e a Maria não foram os primeiros a chegar ao centro do lugar da Torre. Há muito que a ti Maria Valongueira, que atravessou a serra das Banjas e a da Boneca com a canastra dos biscoitos à cabeça, tinha dado sinal de vida. Vinha do lugar de Campo, lá para os lados de Valongo, capital das lousas e dos biscoitos que, no aconchego da toalha de linho branco que cobria a giga, com formatos de peixes, pombas, porquinhos, estrelas, carrinhos e até de cãezinhos, ainda arrefeceriam dos calores do forno.
Uma arroba de farinha, treze quilos de milha e dois de centeio, era a taleiga de um forno familiar, fornada capaz de produzir quatro broas que garantiriam a sobrevivência por mais alguns dias.
Na cozinha da ti Albertina, a Maria Carriça começou a peneirar a farinha e depois a misturá-la com água na masseira. De mangas arregaçadas até ao cotovelo, transformava os cereais tornados pó, numa massa disforme e acastanhada, enquanto o suor lhe escorria pela cara visivelmente cansada e ia cair no preparo em grossas gotículas. De vez em quando, acrescentava água quente à mistura, e ia despejando da malga pequenas quantidades de crescente (espécie de fermento natural), na massa quase pronta a levedar. Preparada a mistura das farinhas que formava um monte no centro da vasilha de madeira, Maria traçou com o gume da mão direita uma cruz no preparado, consagrando assim o futuro pão às mãos do Senhor, e deixou-a em repouso até à tarde.
Por volta das cinco, já o forno ardia em labaredas gigantes e os tijolos-burros, que forravam as paredes, iam adquirindo um tom esbranquiçado, ameaçando estalar de tanta quentura. Era o sinal, o ponto certo para se iniciar a cozedura. Nessa altura, entrou em funcionamento a pá de madeira rabuda, ao mesmo tempo que a massa pulitava na escudela, espécie de bacia em madeira, e era dividida em bolas de cerca de três quilos cada uma. Entram cinco broas pela boca escaldante da fornalha, esborrachando-se um pouco ao tomar contacto com o barro quente da laje. Terminada esta tarefa, seguiu-se o fechar da porta de ardósia, hermeticamente vedada com bosta de boi.
Ao cabo de duas horas naquele inferno, já a farinha se tinha transformado em pão e, no abrir da porta por entre uma nuvem de vapor, deslumbrantes broas, tostadas e bonitas, aparecem num cenário farto, fumegante e consolador. Faziam as delícias de qualquer um, era o sustento do povo garantido por uma semana, o pão que Deus prometera! – pensavam todos. Vindo do céu dos moinhos da Estivada, trazido pelo Zé Marques, por sua esposa Maria e pela mula Andorinha.
O sol despedia-se por cima da Póvoa e desenhava cores prateadas nas águas dos três rios e, já com a volta toda dada, sentados na parede da venda do Constantino, os dois moleiros petiscavam sardinhas fritas, broa de milho, e bebiam pela malga de porcelana branca, uma pinga de vinho verde tinto. Que lhes tingia as bocas de vermelho, cor de sangue, e salpicava a blusa de chita da Maria Moleira.
SOBRE O AUTOR: Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do Douro; Douro Inteiro; Douro Lindo; A Ninfa do Douro; Palavras – Conversas com um Rio; Fado Falado – Crónicas do Facebook, Amanhecer e Barcos de Papel, estes dois últimos de poesia. Colabora com o Correio do Porto desde junho de 2016.
Relíquias de um sistema comunitário de partilha, neste Portugal que, aos poucos, foi saindo de rotinas ancestrais, mas que, na verdadeira plenitude das palavras, não encontrou ainda o pão que Deus prometera!