31.
que procuro no maio reescrito
cerejas, manhã de ervas
húmidas pelos rios de basto
rio paizela, lírios no fim do açude
aí entre os lírios o pai
longe da servidão da velhice iludia
as trutas: o silvo do fio retesado, a frágil
cana-da-índia vergada e trémula.
como vara de vedor.
eu atapetava de hortelã o cesto de vime
morte de peixes do rio cheira bem.
in primavera audaz de devir, Edição Húmus, setembro 2020, página 22
30.
LENHA VERDE
a mãe desaprendeu a fala.
a mãe cativa. só o verde
dos olhos me aperta
e murmura como se eu fosse
ainda um rapazinho
desavindo com o sono.
digo, mãe
mãe, vou cortar lenha verde
zangarinho e alecrim
na mata das dornadinhas
faremos uma fogueira pelo s. joão. →
29.
[devocionário das árvores]
sem a visita das aves
as árvores morreriam
em verde melancolia →
28.
Manjerico
Luminoso nome, cheira a madrugada. →
27.
ramil é um lugar primordial
há o som da água fria a cair no poço
camélias admiradas por várias gerações
e os figos da capa rota
tão doces como o amor de mãe
e agora as jovens cerejeiras
cheias de frutos – alguém as plantou aí
para prover a felicidade das aves.
[rossas 18 maio 2019] →
26.
quem tem telhados de vidro
adormece a contar estrelas →
25. Caneta
Guardas as palavras em estado líquido. →
24.
eis os carneirinhos do salgueiro
manso rebanho a pressentir
a tenra primavera →
23. Outono
das aves caem
as penas.
emigram as árvores
à procura de outro sol. →
22.
Primavera:
Quando te vejo pela manhã
apetece-me ser eterno. →
21.
na alfândega da fé
deus vasculha a cabeça,
o silêncio, os bolsos
dos fieis
só assim escusa a imoral simonia. →
20.
Furão é palavra bravia. →
19.
no amor em pousio
dorme uma tangerina
ainda verde →
18.
Toupeira
Um bicho verdadeiramente apaixonado
pela intimidade da terra. →
17.
a primavera é uma enxurrada
de verdura pelos campos →
16.
Truta
As tuas pintas cor de fogo
não as apaga a água, →
15.
Urso: escorre mel por esta palavra. →
14.
Urubu
Dos tempos de escola
só se lembra de uma vogal.→
13.
Veado: Pequena árvore andante. →
12.
Vespa: Uma abelha
que não aprendeu
a ser doce. →
11.
Em Abril,
águas mil
não sei quantos
que fugiram
para o Brasil. →
10.
Xaputa: Peixe marinho. Em árabe o seu nome é xabbut. →
9.
o silêncio da água
abriga-se na raiz dos plátanos →
8.
as árvores são como os homens, embora
não andem. →
7.
os estorninhos outra vez
em bando pelo meio da névoa
que penúria tão funda os arrasta
como o povo do nosso tempo? →
6.
o fogo outonal nas árvore
prova que a beleza da natureza
se estende até à morte.
uma morte transitória. →
5.
a caça. abriu a caça os cães pela madrugada dentro sôfregos, cheios de doçura e morte. →
4. Janela
certas noites por aí
convido a lua
tomamos chá de cidreira
trocamos versos antigos. →
3. A barca dos dias
um dia cheio de chuva
sobe lentamente a barca
na sereníssima água do tempo →
2. Utopia realizável
é na rua que tudo começa.
hoje foi lindo: hoje voltei
a ter orgulho de ser português. →
1.
Na juventude gostava de pregar
partidas: batia às portas e fugia. →
Francisco Duarte Mangas (Rossas, 1960) foi professor três anos e jornalista durante quase três décadas. Autor de mais de duas dezenas de obras nos domínios da ficção, poesia e literatura infanto-juvenil. O seu primeiro livro, Diário de Link, foi distinguido com o Prémio Carlos de Oliveira. Geografia do medo, A morte do Dali , O coração transido dos mouros, A rapariga dos lábios azuis e Jacarandá são alguns dos seus romances. No campo da poesia, publicou Cavalo dentro da cabeça, Espécies cinegéticas, Pequeno livro da terra, Transumância, Brévia e A Fome Apátrida das Aves. Na literatura para os mais novos começou com O elefantezinho verde; contaria depois as histórias de O gato Karl, O ladrão de palavras, O noitibó a gralha e outros bichos, A menina, Sílvio, domador de caracóis e O gato Karl – a palavraria. Com Augusto Baptista escreveu O Medo não podia ter tudo, e partilharia ainda a escrita de Breviário do Sol e Breviário da Água com João Pedro Mésseder. Integrou a direção do Teatro Experimental do Porto-Círculo de Cultura Teatral, quando o TEP tinha sede na margem direita do Douro, foi vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas, é o presidente da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto.
BIBLIOGRAFIA
1984 Cavalo dentro da cabeça AJHLP
1987 Espécies cinegéticas AJHLP
1993 Diário de Link Editorial Teorema
1995 Ladrão de Violetas Editorial Teorema
1997 Geografia do medo Editorial Teorema
1999 A fenda no cavalo Editorial Teorema
1999 O medo não podia ter tudo Campo das Letras
2000 O homem do saco de cabedal Campo das Letras
2001 A morte do Dali Editorial Teorema
2001 Elefantezinho verde Campo das Letras
2002 Breviário do sol Editorial Caminho
2002 O coração transido dos mouros Editorial Teorema
2002 Os passos por dentro da casa Edições Asa
2002 Transumância Campo das Letras
2003 A casa escrita Edições Eterogémeas
2004 Breviário da água Editorial Caminho
2005 Brévia Hidra Editores
2005 O gato Karl Editorial Caminho
2007 A casa dos caçadores Hidra Editores
2008 O ladrão de palavras Editorial Caminho
2009 O noitibó, a gralha e outros bichos Editorial Caminho
2010 A menina Caminho das Palavras
2010 Sílvio domador de caracóis Editorial Caminho
2011 A rapariga dos lábios azuis Quetzal Editores
2013 A fome apátrida das aves Modo de Ler
2015 Cidade escrita
2015 Jacarandá Teodolito
2016 O senhor nunca e o senhor jamais Edições Afrontamento
2016 Sílvio guardador de ventos Editorial Caminho
2019 Pavese no café Ceuta Teodolito
2020 A Cidade das Livrarias Mortas Teodolito
2020 pequena lua cheia de sol Edições Eufeme