3812
0
COMPARTILHAR
Inicio Poemário Rosa Alice Br...

Rosa Alice Branco (1950)

Rosa Alice Branco (1950)

0
3812

SEU A SEU DONO

A pele espera nas coisas a carícia do uso
como o cão anseia pelo dono.
O bordo do corpo, os dentes do garfo.
Usurpar os lábios entreabertos
como a alma útil e desinteressada.
Um gole de. Faz-se tarde.
O vinho faz esquecer a pele do copo.
Porque tocar (pensa ela)
é uma confidência nocturna.
Lá fora as flores. As sebes.
O ressumar de amantes no cálice.
Toco-te com mãos alheias:
eis toda a confidência de que sou capaz.
Um vestido de seda a abrir na minha perna:
um osso para te fazer correr:
um ganido de amor à porta do prédio. 

10.
É preciso mudar a terra do poema,
talvez arranjar um vaso maior
e deitar estrume em cada vaso.
Ainda ontem removi a terra
e vi no peso das palavras como escondem
o segredo da leveza.
É melhor esperarmos pela primavera

por todos os meses que faltam
para hoje. Até lá
regarei o vaso como de costume.
Tenho exactamente o tempo de uma pausa

atravessa o poema com o teu passo ágil
e senta-te comigo.
Que palavras nos fizeram falar? O que buscamos
no silêncio? Qual a melhor hora
para regar a água?
Caminhemos um pouco. No fundo do vaso
a razão declina no corpo do poema.
Havemos de a retirar com a pá que floresce na primavera

depois atravessamos verso a verso
à superfície
sem vaso que contenha a humildade da terra.

in Soletrar o dia 

9.
As mães são outra coisa
outra massa outra farinha
peneirada como quem semeia.
E de qualquer terra nasce o fruto
já maduro e elas teimam
que não está pronto para a colheita:
– não está e pronto 

8.
As mães só falam uma língua
e sabem o que cada palavra significa
para não se perderem dos filhos.

Desde que falam para dentro de nós
as palavras que as amedrontam
são as que vêm de fora.
Apressam-se a expulsá-las
e tentam esquecer que as dissemos.

Quando os maridos lhes lançam a rede
são as palavras que as enchem de desejo
e gemem de medo 

7.
Às vezes a noite estende-se através da pele,
mas tu mergulhas até apanhar a pedra
lá no fundo
e uma clareira começa a abrir-se no buraco
por onde esvaziaste a noite.

in Da alma e dos espíritos animais, Campo das Letras, julho de 2001, página 55

6.
Deste-me todos os frutos
e eu multipliquei as mãos
para te olhar nos olhos.

in Da alma e dos espíritos animais, Campo das Letras, julho de 2001, página 64

5.
Pias são as vacas
aspirando o chão com as manchas brancas 

4.
Eu tive um cão ou era ele
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber que ia.
Tomava as minhas feridas,
a tristeza que eu pudesse ter
e sofria dela como eu nem sofria.
Trocava de mal trocando-lhe as voltas.
Punha a coleira ao pescoço
e levava-me a passear
como se eu fosse o dono.
E à noite dormia no chão
ou então fingia. Eu acordava
com um servo aos pés da cama,
armava-me em amo
e era ele que me tinha.
Exímio no silêncio
e no uso das armas
com que me defendia
de todos e também de mim:
a linha veloz do pêlo luzidio,
o frémito da língua,
o focinho em arco para a escuta.
Era um cão que me tinha
e uma tarde de verão
atirei-lhe um osso gostoso
antes de o deixar no canil. 

3.
SEM LIVRO DE RECLAMAÇÕES

No princípio era o verbo
e agora ninguém responde.
O marido, a amante, a família e os amigos,
todos alinhados sobre as campas.
Começam pela oração ou o correspondente laico
e logo passam às súplicas e aos subornos.
Os cemitérios são repartições públicas.
Por isso não há respostas.
Há noites mal dormidas pelas razões erradas.
Esta noite a cama tremeu três vezes. Os teus balbucios
na minha boca. A tua pele húmida. Sou o teu epitáfio?
A família e os demais continuam a acorrer aos balcões
sem os formulários preenchidos.
Os mortos já não pertencem às respostas.
Qualquer adjectivo apodrece como as flores.
Qualquer frase se decompõe sem sujeito.
Sou apenas uma tatuagem na tua campa.
No princípio era o fim. 

2.
Não te importes amor
se tivermos a alma em desalinho. 

1.
Olho pela janela e não vejo o mar.
As gaivotas andam por aí e a relva vai secando no varal.
Manhã cedo 

Rosa Alice Branco: Mestre em Filosofia do Conhecimento pela Universidade Nova de Lisboa, com uma tese sobre a perceção visual em Berkeley, nascida em 1950. Ensina psicologia da perceção na Escola Superior de Artes e Design. Participou no Grupo de Estudos de Semiótica e Poética do Porto, tendo sido um dos responsáveis pela revista Figuras e pertence à direção da revista Limiar. A sua poesia, refletindo sobre paradoxos filosóficos e linguísticos, ocupa um lugar único na poesia portuguesa contemporânea mais recente.

Sito in http://www.infopedia.pt/

zp8497586rq
Partilha