7.
Os anjos são recicláveis e a literatura
controla o tráfego aéreo. No porão do
pensamento acenamos à suavidade,
enquanto Deus é uma sala de fisioterapia.
Conservamos as fábricas de electricidade
em níveis aceitáveis de educação sentimental.
Somos homens negros paridores da luz. →
6.
A MÚSICA
A música partilha com a flor
a carne que se alaga como um copo.
A música é um rizoma atómico
cheia de sílabas grossas e finas
no peito maduro da onda.
Por isso a onda cai e a flor
também. E se te digo sei que ficas
triste e é quando substituis essa
geração de força por dois pequenos
vasos à entrada do teu dorso (e qual
és tu e qual sou eu é uma haste subindo)
Do teu lado esquerdo é dia.
O vestido é branco e aponta
a cidade a que chegas com os
dedos, rodando os ombros mas
não a cabeça. O teu olhar
é uma ferida musical sem verbo fixo:
a penumbra bate às vezes na
pálpebra, outras na imaginação.
A queda gera o seu próprio
impulso, como se fosse o preen-
chimento de uma forma: chama-se amor
e serve para os ouvintes ouvirem o esbracejar
do desejo, esses versos de asa silenciosa-
ouves?
Há poetas azuis que julgam que a
coerência é um pardal azul (da goela
até aos pés). Normalmente limpam os óculos
com coerência, em vez de com (enfim)
e depois vêem o mesmo pardal, a todas
as horas do dia e da noite, sentado azul-
mente sobre o seu nariz azul.
Pela direita, dizes que os versos
não caem se mudares constantemente
o chão. Mas os sonhos sim, e que a transla-
ção do vento sabe do remorso dos bichos mais
pequenos: procura as palavras junto ao chão
e se não me vires,
é porque o silêncio é também a música
e canto-a sem nome
para ti. →
5.
SENHORA DE LONDRES ESCOLHENDO LIMÕES
Não, nem todo o limão é amarelo quando
A mão de alguém o toca e humaniza, pequeno deus →
4.
HUMANA PERDIÇÃO A FROUXA LUZ
e foi assim que tudo se tornou demasiado,
os teus ouvidos seguiam a respiração dos que
ainda mexem na memória, a margem fora →
3.
POEMA INÚTIL COM MONTANHA
Vejo a montanha à minha frente pousada
Sobre a água sempre verde, e penso na inutilidade
De tudo o que ela é, e na inutilidade de estar pensando nisto, →
2.
O PÃO
Há pessoas que amam
Com os dedos todos sobre a mesa.
Aquecem o pão com o suor do rosto
E quando as perdemos estão sempre
Ao nosso lado.
Por enquanto não nos tocam:
A lua encontra o pão caiado que comemos
Enquanto o riso das promessas destila
Na solidão da erva.
Estas pessoas são o chão
Onde erguemos o sol que nos falhou os dedos
E pôs um fruto negro no lugar do coração.
Estas pessoas são o chão
Que não precisa de voar. →
1.
AUTOBIOGRAFIA
Não preciso mas tu sabes como eu sou
Encaminho-me pouco divirto-me assim nas copas
Das árvores soprando pensamentos para o mundo que há de noite. →
Rui Costa nasceu no Porto em 1972. Estudou Direito em Coimbra e foi advogado durante seis anos, em Lisboa e Londres. Concluiu um mestrado em Saúde Pública em Leeds, Inglaterra. Actualmente é professor na Escola Superior de Saúde do Vale do Ave.
Em 2005 publicou A Nuvem Prateada das Pessoas Graves (Quasi Edições), livro vencedor do Prémio de Poesia Daniel Faria.
Em 2007 recebeu, pelo romance A Resistência dos Materiais, o Prémio Albufeira de Literatura.
Co-organizou a Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa (Exodus, 2008).
Participou em diversas publicações, nomeadamente: Poema Poema -Antologia de Poesia Portuguesa Actual (U.Stabile, Huelva, 2006); A Sophia – Homenagem a Sophia de Mello Breyner Andresen (Caminho, 2007); Um Poema para Fiama (Labirinto, 2007); Sulscrito – Revista de Literatura; Revista Big Ode.
Publicou em 2009 O Pequeno-almoço de Carla Bruni, 2009.
Faleceu em 2012.