10.
TELA
O que é que a tela branca
deseja na noite negra?
Que a amanhã seja
de chuva torrencial
para a inundar com o arco-íris.
in Em Branco, Editorial Caminho, 2002, página 32
9.
ANSIEDADE
Os rios anseiam por mares.
Os mares anseiam por ventos.
Os ventos anseiam por silêncios.
Os silêncios anseiam por gritos.
O caos anseia pela norma…
ou será o contrário.
in Real… mente, Editorial Caminho, setembro 2002, página 47
8.
Há animais herbívoros,
há plantas carnívoras
e há pessoas pagívoras. →
7.
POEMA DA CONSOANTE
No sambódromo
saltitam solas,
sinos, sinetas,
sainetes, sombrinhas,
sonhos, suspiros,
sorrisos, sustos. →
6.
O MEU LÁPIS
É impossível pintar
a canção do vento
ou o choro das árvores
quando são abatidas.
É possível, diz o meu lápis
habituado a tantas vidas. →
5.
AVIONAR
“Não esteja na Lua
desça à Terra.”
E o menino a replicar:
“Não me chega esta terra.”
“Seja realista, terra a terra.”
“Mas eu sou do tipo ar, ar.”
E os olhos do menino
já eram balões quando a professora
lhe ordenou que saísse.
Despediu-se da colega e disse:
“Conto estrelas em ti”.
Ao sair, deixou na mesa da professora
o mais bonito avião de papel
que se possa imaginar.
Era uma prenda desesperada
de um menino triste
por não a poder contagiar.
Na sala, um silêncio ficou suspenso
por palavras que também quiseram
voar.
in Conto estrelas em ti, 17 poetas escrevem para a infância, Campo das Letras, Coordenação José António Gomes e Ilustração de João Caetano, 2.ª edição, maio 2001, pág. 46
4.
BRANCO
Tenho a palavra branco
e não tenho rima nem poema para ela.
Vou levá-la para a noite e negociar
no mercado negro das palavras.
in Em Branco, Editorial Caminho, 2002, página 67
3.
NEVE
Todos os invernos as montanhas
se cobrem com edredões brancos.
Os turistas enfiam-se nos mais fofos e espessos. →
2.
GEADA
Estende-me um véu de tule
para eu noivar o chão.
in Em Branco, Editorial Caminho, 2002, página 12
1.
ENVELOPE
Abre-me para as tuas palavras.
Lambe-me devagar.
Fecha-me com a tua saliva:
Branco no branco.
Depois prensa-me suavemente
com os teus dedos para colar
e verás empalidecer de inveja
e de prazer, faxes e e-mails
que pensam saber comunicar.
in Em Branco, Editorial Caminho, 2002, página 49
Maria Teresa Guedes nasceu em 1957. Licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras do Porto, concluiu, em 1988, a sua formação em serviço, da qual fez parte o estudo, apresentado à Escola Superior de Educação do Porto, que mais tarde viria a resultar na obra Ensinar Poesia (ASA, 1990). Foi professora efectiva do 2º ciclo do ensino básico em escolas públicas de Vila Nova de Gaia, onde vivia, e dedicou-se à dinamização de oficinas de escrita criativa, para docentes e alunos. Desde a sua estreia em livro, publicou três títulos de poesia para jovens (Em Branco, 2002; Real… mente, 2005; e Tu Escolhes, 2007) e diversas obras de incentivo à escrita de intenção literária em contexto educativo. Escrevia, versos, contos, crónicas. E amava a vida. Deixou-nos repentinamente em 25 de Setembro deste ano (2007), com uma obra por completar, uma obra ainda por cumprir. Marcada pelo humor e pelo dom da invenção e do jogo linguísticos, a sua escrita poética evidenciava também uma ironia discreta e um fundo sentido do humano, a que não era estranha uma notória agudeza na observação das relações entre pessoas.
A memória do luminoso ser que era e a importância dos livros que nos legou são motivo mais do que suficiente para aqui lhe rendermos afectuoso e merecido tributo.