FERNANDO Guimarães continua a ser um dos segredos menos bem escondidos da nossa cultura literária e filosófica, um autor devidamente consagrado, mas que se mantém discretíssimo. Nascido no Porto em 1928, oferece-nos uma significativa e premiada obra poética e ensaística. A Biblioteca Nacional de Portugal dedicou-lhe recentemente uma exposição comemorativa dos seus 90 anos, organizada em quatro vertentes: poesia, tradução, ensaio e revistas literárias. Encontramo-lo na sua casa da Foz do Douro e conversámos numa sala dominada por obras de arte e livros. Mostrou-nos o escritório, sóbrio: estantes a toda a volta, mesa, folhas que esperam, mais nada. Na tarde de Outubro em que o visitámos, aguardava-se uma tempestade e as ondas já se levantavam no fim da rua. Com a sua perspectiva tão particular e naquele tom e timbre únicos na nossa literatura de que nos falou Eduardo Prado Coelho, a propósito da sua poesia, já o escutáramos sobre fenómenos assim: “A luz é outra sobre a cidade. As águas sobem. O vento recebe-as e há no ar / qualquer coisa que chega com um sabor a sal. Será este o novo alimento / que nos traz? (..)” – “Tempestade em Veneza” in As Raízes Diferentes.
Talvez pudéssemos começar pelo mais circunstancial. Como descreveria o seu local de trabalho? É uma ilha, uma cela, um santuário?
O lugar onde eu escrevo é uma folha de papel branco e procuro habitar nela através de um poema. Apenas isso.
Há no seu “habitat” de trabalho objectos indispensáveis à sua volta ou é absolutamente supérfluo o que o rodeia no momento da escrita?
É absolutamente supérfluo.
Tem de ser um ambiente amigável, deve ter luz, silêncio, música, ruído?
Pode haver música e pode haver silêncio. Convivo com as duas coisas.
Como descreveria a sua biblioteca? Está mais próxima de uma ideia de “cosmos” ou de “caos”? Como a organiza ou desorganiza?
Para mim, os livros que são meus têm de obedecer a uma ordem, de maneira a que eles possam ser por mim encontrados ou que, por estarem no sítio certo, venham ao meu encontro.
Considera-se um bibliófilo?
Não, não sou bibliófilo. Não tenho o culto das primeiras edições. Se as encontro ou se elas vêm ao meu encontro, gosto de as ter, mas o que me interessa sobretudo é o texto em si mesmo.
Tem uma rotina de escrita, rituais?
Considero que a minha escrita obedece a uma necessidade. Se é uma necessidade, não precisa de qualquer espécie de ritual. Nasce a partir de si mesma.
Mantém boas relações com as velhas musas inspiradoras? A inspiração é importante para si?
A palavra “musa” é uma palavra perigosa, porque nos atira para um tempo ou para um templo que nós já não habitamos. A poesia está muito ligada às nossas próprias vivências, à maneira como nós encaramos a realidade, como encaramos o mundo, como encaramos a linguagem, a nossa e a dos outros. E, portanto, são esses os espaços em que qualquer poeta tem de se mover.
Mallarmé afirmou um dia a Degas que poemas não se fazem com ideias, mas palavras; de qualquer forma, o que decide o nascimento de um poema, o que é que o faz eclodir? É um processo surdo e lento, há momentos explosivos?
A referência que faz a Mallarmé é muito importante. Ele, de facto, reconheceu que a poesia não se escreve com ideias, mas escreve-se com palavras. Pergunto: as ideias não podem estar nas palavras? As palavras não têm sentido? Mallarmé tendia para o “aboli bibelot d’inanité sonore”, quer dizer, quase que privilegiava na palavra o seu significante, mas nós sabemos que, como numa folha há duas páginas, numa palavra há um significado e um significante. Como é que nós podemos separar numa folha duas páginas? É impossível.
Na eclosão da poesia, qual o papel das leituras e das outras artes, muito em particular a música e a pintura, que percorrem tantos dos seus textos?
Evidentemente que a música e a pintura têm formas de expressão totalmente diferentes da poesia. A poesia privilegia a linguagem. Podemos dizer que a pintura e a música também têm uma linguagem, mas aí a palavra “linguagem”é usada metaforicamente. Uma influência que possa vir da pintura ou da música é uma passagem para um meio de expressão diferente. Um poeta pode reportar-se a um quadro de um pintor, como justamente Degas, e a partir dele encontrar um poema, mas isso quer dizer que esse poema não descreve o quadro de Degas. Não é uma descrição, é uma recriação ou, para sermos mais rigorosos, uma recriação que parte do próprio poema e não do quadro. O poema é que vai ao encontro desse quadro, não é ao contrário.
Muitas vezes notamos que a sua poesia é alimentada por vários mitos e figuras, a começar por Narciso, que aparece logo no primeiro livro. Esse imaginário antigo é também um bom fermento poético?
Todas essas lendas partem de uma base, que é uma base literária. Por exemplo, a Ilíada, a Odisseia. Os poetas gregos e latinos referem esse caldo mitológico que cerca o nosso imaginário. Se na poesia a imaginação desempenha um papel fundamental, parece-me que essas dimensões de imaginário que a mitologia oferece podem ganhar no poema uma dimensão que já não é aquela que tinham, por exemplo, no tempo de um Ovídio, no tempo de um Homero, no tempo de um Virgílio, ou até no tempo de um Camões, que tanto se serviu da mitologia- mas ganham precisamente a dimensão mítica e simbólica que a poesia procura através da sua própria imaginação.
As viagens podem ser uma maneira de incitar à poesia, constituir uma experiência poética. Não obstante, nós não vemos muitos topónimos na sua poesia, penso que Veneza é dos poucos que se repete… É assim?
Acho que responde à pergunta que me faz, já deu a resposta…
O escrever à mão, o manuscrito, são para si importantes? E as novas tecnologias, o computador, em que é que ajudam ao processo poético?
De facto, escrevo a poesia à mão. Gosto depois de a ver tal como ela poderá ser no livro. O acto de escrever pressupõe uma forma, uma espécie de Gestalt. Essa Gestalt é-nos dada pela configuração que se encontra no livro. É nesse jogo entre a mão que não obedece a nenhuma Gestalt e a página do livro que a capta que se faz a relação entre o livro e a mão.
O trabalho de revisão é importante? Quando é que finalmente larga um poema, quando é que sente que ele já pode ir à sua vida?
Geralmente é ele quem o diz… Obedecemos um ao outro…
Tem o hábito de dar a ler os poemas a alguém antes de os publicar ou em esboço? Há algum leitor privilegiado que seja cúmplice na construção desse processo ou é uma tarefa absolutamente solitária?
Por acaso até é solitária. Não quer dizer que considere que a poesia é para ficar fechada em si mesma. A poesia tem uma necessidade que é a necessidade de comunicação. Aquilo que eu quero dar a ler é aquilo que eu considero como já resolvido, para o bem ou para o mal, para o perfeito ou para o imperfeito. Se é imperfeito procuro corrigir. Esta solidão é uma solidão convivente.
A poesia de Fernando Guimarães convoca muitas vezes a figura do leitor, embora afirme também, algures, que “o poema que se escreve é a um estranho que deve ser entregue”. Há um leitor implícito nos seus poemas, um leitor ideal que eles reclamem?
Não, não. Acho que, de facto, a poesia tem em si uma enorme possibilidade e diversidade de leituras (os linguistas costumam chamar a isto “polissemia”- utilizemos a palavra com todas as cautelas…). Assim, as palavras na poesia têm uma tal diversidade que o próprio autor lê o poema que escreveu. Ele também é um leitor. Esse leitor multiplica-se por todos aqueles em relação aos quais há um acto de comunicação. O poema, se é efectivamente uma realidade única e fechada em si mesma, é ao mesmo tempo uma possibilidade de fermentação significativa. Isso corresponde a possibilidades múltiplas de leitura que têm de convergir para a unidade que o poema é em si mesmo.
Revê-se em alguma família poética? Sente que há afinidades electivas com alguns autores? Venera heróis literários?
Eu gosto de ler todos os autores. Os bons porque me revelam possibilidades ilimitadas de linguagem, os maus porque me ensinam a evitar o fechamento que a poesia às vezes em si mesma pode ter.
Tem algumas memórias significativas de tertúlias, de grupos literários em que tenha participado?
Tive, evidentemente, encontros que posso considerar privilegiados com vários autores. Os encontros a nível pessoal foram ricos em si mesmos. Mas os grandes encontros a nível literário estão realizados nos próprios livros que vieram ao meu encontro, que eu li.
Como vê o papel das revistas de poesia, nomeadamente no Porto, ao longo dos tempos? Será que no Porto persiste uma tradição poética específica?
Se é importante uma revista de poesia? Evidentemente que é importante. Mas uma revista de poesia só tem significado quando ela ganha uma unidade que, aproximativamente, nós poderíamos dizer que é de natureza geracional. Quando as revistas são demasiado eclécticas perdem essa substância fundamental de uma revista literária. Por exemplo, o Orpheu, a Presença, a Távola Redonda, a Árvore, entre outras, são revistas que correspondem a gerações diferentes e que encontraram um espaço criativo que tem uma realidade, uma riqueza efectiva no seu campo expressivo. Isso é o que, a meu ver, representa efectivamente uma revista de poesia. Relativamente ao Porto, tivemos algumas revistas que marcaram, por exemplo A Águia, que girou em torno do universo da poesia dos saudosistas, como Teixeira de Pascoaes. Antes disso, tivemos aquelas colecções de poesia, como O Bardo, ligadas ao Ultra-Romantismo, ou, por exemplo, a Notícias do Bloqueio, muito associada a uma segunda geração neo-realista. Mas de facto temos de reconhecer que a localização mais significativa das revistas está em Lisboa. Simbolicamente, o Orpheu representa esse esplendor de uma realização literária ou, em Coimbra, por exemplo, se considerarmos a Presença como uma movimentação extremamente importante no campo da poesia.
Não há uma especificidade portuense da poesia? Não faz sentido falar de uma tradição literária portuense?
Nem de falar de uma tradição lisboeta ou coimbrã. As grandes diferenças, se quisermos de uma maneira um pouco artificial focá-las, são no tempo, são geracionais. A referência topográfica, da cidade ou do local em que surgem certas revistas, não dá uma marca que seja caracterizadora de uma maneira significativa.
Agora uma proposta um pouco desonesta, sugerindo-lhe que se desdobre no papel de poeta e de crítico de si próprio. Disse um dia, a seu propósito, Eduardo Prado Coelho: “Não há na literatura portuguesa o mesmo tom, o mesmo timbre”. Como vê o lugar da sua poesia na literatura portuguesa? Sente-se um estrangeiro, um amável intruso? Revê-se na perspectiva de Eduardo Prado Coelho?
Isso não tem resposta. Escrevo como escrevo. É engraçado: eu escrevo como escrevo, mas se vivesse no século XVIII escrevia de maneira diferente. Como é que eu escreveria no século XXIII? Posso ainda dizer que eu escrevo como escrevo?
Não consegue olhar a sua poesia como se fosse de outro autor? Já tentou alguma vez fazer esse exercício?
Não directamente. Mas precisamente, indo nessa direcção, é que eu tive necessidade de reflectir sobre o que é efectivamente a poesia. Não a minha, mas a poesia em geral. Foi através de um outro tipo de linguagem, que já não é a linguagem do poema, mas é a linguagem do ensaio, ou da investigação, ou da filosofia da arte, que eu procurei encontrar aquilo que de facto faz com que um poema seja um poema. Acerca disso expus as minhas ideias (elas estão em vários livros) e foi apenas esse o meu esforço para sair de um poema que escrevi, para ter um entendimento do que é a poesia em si mesma. E, sendo a poesia em si mesma, já não é a minha, já não é a de outro poeta, é a poesia enquanto poesia.
Poderemos falar de um conhecimento poético, que se coloca a par do conhecimento científico ou do filosófico? Haverá alguma especificidade do conhecimento poético, que traga uma mais-valia à poesia? Será uma forma de conhecimento tão útil, tão penetrante como o conhecimento científico, filosófico e outros?
Pergunta-me se a poesia é um conhecimento e, ao mesmo tempo, falou-me em dois outros conhecimentos que, da maneira como fez a pergunta, seriam diferentes da poesia: o conhecimento científico e o conhecimento filosófico. Quando alguém põe o problema do que é o conhecer, pode seguir vários caminhos. Um deles, hoje em dia, seria predominantemente o conhecimento da ciência, que todos nós sabemos que não deixa de ser aleatório. As tendências mais recentes no campo da epistemologia tendem precisamente para um conhecimento aproximativo, para um conhecimento através do erro, para a falibilidade do saber. Através do conhecimento da filosofia nós encontramos geralmente desenvolvimentos de pensamento que se constituem em sistemas. Esses sistemas (por exemplo, o sistema de Kant, de Hegel, de Aristóteles, de S. Tomás de Aquino) são sistemas que conflituam entre si, se cruzam entre si. O conhecimento, afinal, não atinge metas absolutas e, mais do que isso, diversifica-se através da linguagem, por exemplo da ciência ou das ciências, da filosofia ou das filosofias. Isso acontece com a poesia. A poesia é também uma forma de conhecimento. Que espécie de conhecimento? É um conhecimento que nos é dado, não pela razão matemática, pela coerência lógica (uma na ciência, outra na filosofia), mas por um processo que é da própria imaginação, que encontra na linguagem as possibilidades de realizar esse conhecimento imaginativo. A poesia é, portanto, um conhecimento, mas não é um conhecimento absoluto. É um conhecimento diferente da ciência (que não utiliza a imaginação) e da filosofia (que foge da imaginação). Ela procura e vai encontrá-lo no uso da própria linguagem. Porquê? Porque a linguagem possibilita essa difusão significativa, a tal difusão que os linguistas chamavam “polissemia”, a multiplicidade de sentidos.
Sendo a poesia tudo isso que disse, como explica o lugar tão minoritário, tão marginal, que ela ocupa hoje, se compararmos com outras épocas? Será que, neste tempo tão globalizado, lhe cabe ainda um papel importante?
Falei há bocado n’ O Bardo. O Bardo era uma publicação que saía aos fascículos, que depois eram reunidos e formavam uns volumes. Tiveram uma grande difusão e julgo que o seu director literário teve um êxito tão grande, ele que era comerciante, que acabou por falir na sua actividade comercial… Isso mostra como de facto a poesia pode atingir um grande público… Com a necessidade de prosseguir nessa via que apontámos há momentos, de que a poesia é um conhecimento que implica uma escrita extremamente fluida na possibilidade de revelar meandros significativos e diversificados, vai-se tornando cada vez mais difícil de apreender, porque vai exigir ao leitor uma capacidade de leitura. Ora, n’ O Bardo essa leitura era dada quase ipsis verbis pelo próprio texto poético. Eu julgo que está aí a explicação para o facto de um certo público do século XIX, que está muito ligado a uma situação de vida, a uma burguesia nascente, facilmente conviver com um tipo de linguagem que, todavia, se foi tornando cada vez mais complexa. Imaginemos, por exemplo, a dificuldade que, na primeira metade do século XX, havia em ler-se Fernando Pessoa. Isto diz tudo…
Como é que em Fernando Guimarães o poeta e o crítico convivem? Aprendem um com o outro?
O discurso é o mesmo, o que é revela-se sob formas diferentes – mas ambos procuram a mesma coisa.
Até que ponto se revê na ideia de que na sua poesia se evidencia uma atitude existencial que denota uma “douta ignorância”, para usar uma expressão muito antiga? É como se houvesse uma espécie de sábia ingenuidade, uma maneira ao mesmo tempo culta e exigente, mas desarmada perante as coisas à sua volta…
Falou aí numa referência existencial. A minha formação fez-se praticamente nos anos cinquenta. Os anos cinquenta constituem precisamente um período em que uma corrente filosófica, o existencialismo, nos surge como um pensamento colectivo; foi talvez uma das poucas correntes filosóficas que teve uma certa expansão, que ultrapassou, digamos assim, os círculos universitários ou académicos. O existencialismo foi um tipo de pensamento que me atraiu, porque os seus temas iam ao encontro de grandes temas que eram aqueles que estavam ligados à vivência poética. Por exemplo, se as categorias filosóficas de um Kant ou S. Tomás de Aquino tinham a ver com o ser ou o conhecimento racional, noções realmente abstractas, o existencialismo, nas suas categorias, estava muito ligado à vida concreta, à existência humana: o tema do amor, o tema da morte, o tema religioso (por exemplo em Kierkegaard); o tema das relações humanas (pensemos num Sartre); o tema do encontro com a arte(e pensemos num Merleau-Ponty). Todo esse núcleo de pensadores criou uma obra que, embora expressa sob uma forma que é teórica, incidia sobre temas que estavam muito ligados às próprias vivências poéticas e a essa certa necessidade de comunicação que a poesia traz consigo. Isso marcou-me muito.
Fernando Guimarães fez várias traduções. Vale a pena traduzir poesia? Como vê esse exercício: milagre, traição, alquimia, contrafacção?
A tradução é um jogo, mas é diferente numa coisa de um jogo: ou se perde ou se ganha, não se pode ficar empatado, é uma coisa ou outra… Como se ganha o jogo na tradução? Nunca, a meu ver, enveredar por uma perspectiva puramente filológica, porque nessa altura o tradutor é traidor. A tradução põe problemas extremamente delicados. Por exemplo: como traduzir, imaginemos, um poeta do século XVII ou do século XVIII no século XX ou XXI? Com linguagem do século XVII ou do século XVIII ou com a linguagem do século XX ou do século XXI? Eis um problema importante na tradução. Um exemplo: se uma Marquesa de Alorna traduz e fala numa “filomela” está tudo certo; mas se um tradutor do século XX tem a desgraça de traduzir por “filomela”é um horror… Isto mostra bem o problema que a tradução põe. Outro problema complicado e complexo é, por exemplo, o uso da rima ou a quantidade de sílabas, quando ela existe no texto original. Quando aí o tradutor procura ser fiel, geralmente falha. Basta considerar a facilidade que há na língua francesa em rimar e a relativa dificuldade que há na língua portuguesa – é muito mais difícil…Numa linguagem que tende para o analítico traduzida para uma linguagem que tende para o sintético, como contar as sílabas? Tudo isto são problemas que a tradução põe. Precisamente por haver esses problemas, é um trabalho extremamente sedutor, porque a escrita é uma maneira de vencer ou procurar vencer as dificuldades e os problemas.
Lembrando que Fernando Guimarães há tantos anos faz crítica de poesia regularmente, que critério ou balizas toma para si próprio nessa actividade?
Na crítica de poesia eu quase que diria que procuro evitar que ela seja uma crítica, o que quer dizer que não me interessa colocar-me numa posição de natureza valorativa, na medida em que a palavra “crítica” aponta muito para uma valoração. Procuro fugir a isso, não faço isso. O que eu procuro é isolar, por vezes, nas críticas que faço, um número limitado de autores, dois ou três, em que verifico que haja uma possibilidade de encontrar neles, não uma influência uns nos outros, mas um fio condutor que permita uma leitura diferenciada que respeite a independência que esses livros revelam. No entanto, permitem, numa dimensão que é a do leitor (e o crítico é um leitor), encontrar espaços de sentido, de significado, que reúnem, digamos assim, a possibilidade de ler esses livros em função dessa perspectiva. É uma perspectiva de focagem, pode haver outras diferentes desta, mas é aquela que eu geralmente escolho para fazer uma abordagem dos livros de poesia, recusando sempre colocar-me numa posição de emitir juízos de valor. Claro está que o facto de os escolher já representa o interesse que eles manifestam.
Como vê o panorama da poesia portuguesa contemporânea?
É uma pergunta muito complicada… A resposta que posso dar, no fundo, gira em torno disto: nós estamos num momento em que se verifica uma mudança de registo, entre aquilo que se designa como um sentido de modernidade e um sentido que reage contra essa modernidade e que se designa por “pós- modernidade” ou “pós – pós – modernidade”. Eu vou ser muito sintético. A modernidade tem sido muito vista em função do Modernismo, mas o Modernismo é uma movimentação que está localizada no tempo. Se tudo é Modernismo, quer dizer que a modernidade é apenas algo de epigonal, mas não é. Os próprios modernistas tiveram a consciência disso. Fernando Pessoa chama a atenção para os poetas românticos e simbolistas e diz que o Modernismo é muito marcado por esses poetas. Portanto, a modernidade não está no Modernismo, o Modernismo é um momento dessa modernidade. Outra confusão muito grande que se faz é a de que o Modernismo é vanguarda. Foi vanguarda naquela altura, mas não é só vanguarda, pois, se o Modernismo tem a consciência de que há essa deriva que vem do Romantismo e do Simbolismo, não é vanguarda, porque a vanguarda recusa a tradição. Há uma tradição no Modernismo: isto demonstra bem que não se confunde com a modernidade. O que caracteriza a modernidade? Procura encontrar uma linguagem que valoriza a dimensão da própria linguagem, o papel que os símbolos, a metáfora, o mito nela desempenham, e recusa uma poesia subjectiva. Procura uma objectividade na poesia. Essa objectividade é dada precisamente pela própria substância da poesia, que é a linguagem. O Pós-Modernismo recusa tudo isto. Procura ir à subjectividade, não aceita o símbolo, recusa, inclusivamente, as vanguardas, porque tem uma visão revivalista da literatura e, quando pretende ser de vanguarda, surge já não como vanguarda em si mesma, mas como uma neo- vanguarda, como, por exemplo, o Neo-Romantismo ou o Neo-Simbolismo, etc. É um “neo”, é a poesia do “neo”. É uma poesia do que Gianni Vattimo designava por pensamento “debole”, é uma poesia “debole”. É esse o grande conflito. É assim que eu vejo a poesia actual: esse jogo, esse choque entre essas duas tendências.
Quer falar-nos dos projectos de escrita com que se ocupa actualmente?
Tenho muitos. Neste momento tenho um livro de poesia para publicar e um projecto, a nível editorial, de uma reunião de toda a minha poesia; e tenho um livro de ensaios um pouco em torno disto que acabei agora de dizer, que se chama precisamente As outras literaturas. Coloca o problema da tradição e da vanguarda e, oposta a essa tradição, a renovação dentro da literatura portuguesa, desde o Romantismo, passando pela Questão do Bom Senso e do Bom Gosto, até chegar a este conflito que aqui gizei de um modo esquemático.
Como se reflecte a sua necessidade de ler e escrever poesia?
Uma necessidade não traz consigo as razões por que é uma necessidade. Quando sentimos uma necessidade, sentimo-la vivencialmente. Ela não se explica a si mesma. A necessidade nunca é um caderno de encargos ou um guia de tratamento, tem uma natureza puramente vivencial, ou se sente ou não se sente. Há pessoas que escrevem tantas horas por dia, mas isso é porque têm necessidade de o fazer.
Quando sentiu que a sua vida passaria pela literatura e pela poesia?
No caso da poesia, tudo começa sempre pelo interesse pela leitura. Depois entra-se no reino do inexplicável. Quantas pessoas lêem poesia e não se sentem motivadas para escrever… Tudo o que é vivencial é tão pessoal, e o que é pessoal acaba por ser secreto. Não porque se feche a porta, é porque a porta já está fechada. Posso ter aqui falado da poesia, mas de mim não falei…
Foz do Douro, Porto, 13 de Outubro de 2018
Entrevista publicada originalmente na Gazeta Literária da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Verão/Outono 2018 | n.º 3.