É FÁCIL esquecer que vai o Verão no pico (chora a sirene dos bombeiros em tom aflito) pela brisa fresca que me entra no carro, sem convite, mergulhando no meu turbilhão raciocinado de uma vida que se prende às nuvens e, sem elas, cai inanimada no meu peito. O dia leva-se assim, sem respirar, a eito.

Aprendi que algumas frequências rádio não transportam no seu espectro a boa nova, ondulam no intuito perverso de nos querer fora do universo. Sintonizo a radiofonia até que o som me refresca como o ar corrente, por vezes ausente, e a leveza do instrumental, desconhecendo eu qual, orquestra-se quase por magia com o borbulhar cansado, anafado, do rio por entre as pedras da levada. Está ali um eu, novo, mais novo, inocente, em pé nas pedras, preparando-se para mergulhar por entre o calor da tarde das férias grandes, o que fizemos às nossas crianças gigantes?

A profilaxia tem um traçado, o fugir por entre curvas de aldeia com um caminho recortado, o imaginar de um empedrado a caminho do meu entrecortado habitáculo, onde leio das páginas siderais o destino de saber, por mais que viva, o silêncio nunca será demais. Sobra a casa de madeira nascida acompanhada, admirada, rodeada e protegida pelos sobreiros, ganhando cor com os bichos que por ali andam, ordeiros, subindo e descendo um montado nascido das mãos de hábeis oleiros, enquanto uma criança me levanta a mão, acenando a inocência, e eu lhe atiro uma estrela em cadência, é delas o céu ou o que resta do que vislumbro pelo espelho, espelho meu.

A noite acende-se dum tom alaranjado, talvez o tenha feito porque estou na altura de me colher citrino, mas sou trazido ao percurso, físico, e à razão do sentido e direcção tomados, longe da necessidade de uma transcendência, a luz não veio buscar, é o indicador de combustível, vulgo luz de reserva, que me pede afável que a apague.

Indico a mudança de direcção, sei que o serviço é atendido, mas gosto do acto de sair do carro, marcar a quantia desejada, levantar a mangueira de gasolina exalada e, num acto que a minha criança admirava (a mesma que ficou a mergulhar na levada), abastecia-me a mim mesmo, literal e metaforicamente.

Vou efectuar o pagamento, de máscara mascarado, trocando as palavras necessárias e o tradicional cumprimentar do gasolineiro com um “está tudo bem?”. Ele pisca-me o olho e tenta falar, mas de máscaras alçadas não há dialogar. Saímos ambos, desmascaramo-nos e confidencia-me “está melhor que bom hoje!”. Aceno a cabeça num “então?” e ele, tímido, olhou no horizonte alaranjado que se envergonhou e quase amadrugadecida antes de tempo “fui ao médico com a patroa, vou ter um menino”, escapa-lhe um “fodasse” que ameniza com um “desculpe”.

“A gente só quer que ele venha perfeitinho, mas eu, se possível, queria menino. Sei que eles fogem paras as mães, mas…”, o Sol punha-se no mar que nascia daqueles seus olhos escuros, ancorado pelo sorriso tímido e orgulhoso “olhe, é um menino!”

Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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