HÁ cães feitos gente, reviram lixo.

Assentes nas patas traseiras, abocanham as sacas de lixo que, ao infalível olfacto deles, lhes parece ter algo de alimentar.

Não que os cães saibam o que é alimentação, roda dos alimentos, caviar ou bacalhau, fastfood ou food propriamente dita.

Eles, cães, têm o seu sentido de preservação, que não inclui obviamente desviarem-se de grandes veículos em movimento ou de certas e determinadas pessoas, os desumanos, mas é este sentido de preservação do seu canídeo corpo que lhes faz percorrer distâncias até encontrar um aleatório maná.

São eles gente, despojada, transportando nos olhos ainda sonhos, seja em forma de roda gigante a abocanhar, seja no símbolo universal do osso, branco, cheiinho de tutano.

De cabeça baixa, vejo-os mastigar o plástico, a roer cartão da caixa da pizza, e depois imagino-os rindo sorrateiramente, enquanto a noite se espreguiça pelo dia fora, a deitarem-se num local de erva quente ou num buraco de terra que o sol aqueceu.

Acredito que lhes faça falta uma mão a deslizar pelo pelo, a coçar atrás das orelhas, a acariciar o ventre quando eles, confiança ganha, se viram de patas no ar para nós, como quem diz, aqui está um amigo.

Há uma certa simpatia, minha, pelos canitos vadios, bem tratados pelo tempo e afagados pela Natureza.

Alguns imitam bem o homem, matreiros e alcoviteiros, parecem farejar o medo e a ingenuidade e, zás, rasgadela na carne que do barro se fez pessoa.

O vento serrano açoita o próprio frio e um cão da serra, enjaulado, dorme alheio à avalanche de turistas, a pessoas que, com o dedo por entre as grades, o tentam acordar.

Deve haver algo em nós, inumanos humanos, que faz de tudo o que não é bípede sem inteligência subespécie, como se todos os que habitam este planeta fossem como eles, nós, desprovidos de sentimento e emoção, sem qualquer direito a andar por aí apenas por andar.

Dentro de momentos, já eu sou cão ou, melhor ainda, faço uma lareira, abrigada do vento, pode ser num buraco de terra que o sol aqueceu, e deito-me no chão, barriga para o ar, feito cão.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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