– HOJE sou eu que pago os cafés! – Ainda não tinha acabado de beberricar o negro, torrado, quente néctar que me habituei a ter na boca, já me tinha batido no ombro a sorrir. Agradeço e pergunto o porquê de tanta generosidade, mas tinha sido a simpatia que realmente me tinha cativado – Faço hoje 50 anos! 50! Passa num instante!

Há uma genuinidade na simplicidade que me desarma. Não é pelo café, sessenta cêntimos não são nada (ao mesmo tempo são seis pães), na verdade foi um euro e vinte cêntimos, era o meu café e o do meu pai, mas a alegria de uma data que, caso não fosse ele a recordar e celebrar dificilmente alguém o faria, pelo desconhecimento da mesma, pela ausência da família, pela rapidez com que acrescentamos dias à vida e nos esquecemos de os viver. Era dia de festa! Por entre a clientela, lá surge um pedido diferente, um copo de Porto, um sujo, uma cerveja, um favaios, e tudo ele pagava pousando as moedas no balcão de granito, com um sorriso. Não há como dar quando queremos receber, de certa forma é uma perda de identidade quando nos despojamos esquecendo-nos, para encontrarmos de facto quem somos.

Sem me lembrar que esta vida, neste planeta, é muitas vezes uma caminhada por entre os pingos da chuva, sem máscara cirúrgica, artesanal ou comercial, pouso a chávena no pires, tilintam ambos no balcão, dou-lhe um aperto de mão e um abraço forte, correspondido, junto com os parabéns e os tradicionais votos de saúde. Esta passagem é de facto isto amiúde, um abraço a um conhecido, o sorriso de um amigo, a nesga de Sol por entre os eucaliptos que me faz vislumbrar pequenas estrelas a cintilar nos olhos semicerrados e uma mão cheia de sonhos dobrados.

Faltaria pouco para o café fechar, longe vão os dias da porta aberta até longa noite durante a semana, incluindo os domingos à tarde. Agora todos levam a chávena, copos e garrafas para dentro, dobram as mesas de madeira e metal, colocam as cadeiras alinhadas e despedem-se antes do meio-dia, sulcando a estrada esburacada e acompanhando, alguns ebriamente encorajados, as irregularidades da vida despoluída de coisas complexas. Faço de propósito para ficar para o fim, atraso a conversa à guisa de o esperar e espero que saia. Com os bolsos quase vazios, a presença perfumada de uma cara barbeada, levanta as abas do casaco e despede-se enquanto conta os trocados – Ainda dá para uma regueifa das pequenas – e ri-se. Pergunto-lhe se quer boleia – Ainda passo na padaria, tenho que ir por lá – minto para que não sinta que o faço propositadamente.

Num domingo sorridente, afinal era o seu aniversário, seguimos os três, eu, ele e o meu pai que me sorri percebendo o que tinha feito, já com o cheiro a regueifa quente dentro do carro. Paro ao lado da sua casa, humilde como ele, grande também como ele. O espesso cedro atira uma sombra calma sobre os paralelos, os cães ladram ansiosos com as patas no portão em equilíbrio excitado e ele mira-nos – Vou acender a salamandra, vestir o pijama e ficar o dia todo assim! – fechou gentilmente a porta do carro, virou-se para trás e enquanto levantávamos a mão em jeito de despida, colocou a regueifa debaixo do braço para abrir o portão e, ao acenar-nos, num olhar rasgado pelo sorriso:

– Estou mesmo feliz hoje.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.

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