PAGARIA, pudessem as nuvens serem dinheiro, o que necessário fosse para ter sempre a refracção das gotículas de água num dia de sol tímido, enganando o torpor de uma viragem na estrada com a promessa de ser, novamente, o som abafado da surpresa de uma criança a ver pela primeira vez a influência de um sorriso.

Tenho gasto as horas, talvez por isso o tempo ranja quando passa perto de um sentimento e o vento se faz ao caminho, na maior parte das vezes sozinho, para se sentar no colo de alguém que o embale, até ele se recordar daquilo que realmente vale.

Deitado, a noite subiu já até ao meu peito, preparando-se para me cobrir e eis-me na gare do sonho. Vão passando entusiasmados por mim, atropelando-se, correndo para novos horizontes, fazem-se assim aqui, aos montes. Em frente a mim param vários, adensam-se para que entre, mas apenas sorrio e declino timidamente. O meu sonho faz-se devagar, com a paciência do tempo e a implosão das estrelas.

Lá seguem eles, elas, indistintos e constritos, novos, velhos, entrando e saindo, trocando abraços, beijos, sorrisos, daqui e dali. Ouço, incrédulo e triste, quando a alguém é negada entrada, apenas por não ter bilhete para viajar, com o destino irónico das passagens serem obrigatoriamente grátis, mas mesmo assim exigíveis para exibir aos que, pesadelados, desconhecem sonhar-se pobre, para se acordar rico.

O meu sonho é imutável, inocente, inócuo e desambicionado, passar pela vida devagarinho, em silêncio e com o peso das questões que me responderam apenas quando eu me transformar em resposta, ter a postura de um velho banco de jardim, virado para o mar ou para onde me queiram olhar e, assim, ao de leve, beber amor em cada passo a dar, para que, um dia, seja o sonho de acordar.

Vejo-te aí sentado, penando umas horas até madrugada, rindo e chorando, até que umas calçadas te percorram no sussurro de umas noites iluminadas. Não sabes quantos anos te viveram, no entanto, achas-te numa infância envelhecida, onde as caricas com cera de vela são recordações breves dos longos dias que salgaste, percorridos por uma neblina ténue, como se o dia se recusasse a acordar, onde os sonhos se propagam rapidamente, sem defesas ou ameaças, apenas nadando de encontro às águas de quem os bebem.

São dias assim, onde descansas e eu, sem dares por isso, me encosto a ti dizendo: não sou um sonho. Agora sim, é hora de dormir.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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