SOCIALMENTE distantes, as pessoas apressam-se na devida separação do que é e do que pode ser. O balcão alonga-se na tentativa de ali caberem mais raspadores, o barulho das moedas, as aparas de uma aflição contida na esperança de ver sair dali o prémio, a ilusão, o desvio saboroso do destino que dali chama, as portas de vidro abertas de par em par, pacientes impacientes no vagaroso apressar.

Sentado na praça de alimentação, ou de espera, como é o meu caso ou ainda de aflição, as mesas de plástico casualmente desinfectadas por uma impreparada mão, o café no palato oscila-me entre a visualidade e o bom dia apregoado por quem do Rio de Janeiro vem. “Há que tentar a vida, né?”

É cedo, a maior parte dos estabelecimentos comerciais estão ainda encerrados, abrem os usuais, ainda ensonados, o segurança de ar austero, deformação certamente, aponta e pede aos mais despreparados ou aqueles que, preparados, marimbam-se para uma pandemia quando por dentro o corpo lhe avisa que o destino apressa-se à sua revelia, “Coloque a máscara correctamente, por favor”.

Somos todos iguais, doentes que o sabem, doentes que o irão saber, doentes por afinidade e os que vivem para morrer, que são os saudáveis, doentes como todos os outros.

Emociono-me com o homem imaculadamente vestido, garrafa de oxigénio a acompanhar-lhe os passos, as cânulas como extensão de um respirar pesado, o vulto negro que o assombra sobre o pescoço e com a gadanha lhe raspa o folheto da sorte ou, neste caso, a espreitar-lhe a própria morte. Há prémio para a vida?

A meu lado, com a mão bolbosa, inchada devido ao cateter, os dedos torpes e pálidos extremados por umas unhas cor-de-rosa num chamamento primaveril, ajusta o gorro sobre o cabelo doutrem e, de olhos no relógio de parede, mira-se na vitrina onde a vaidade sequiosa sacia a sede, aguardando a hora do tratamento. Não há, em toda a sua postura, um lamento.

Alguém admira a tecnologia, amiga de quem deseja efectuar o pagamento sem se sujar ou contaminar, uma mini torre de Babel suga as notas, dá troco e ainda acende umas luzinhas, sem a saudação ou o sorriso a quem ali chega desterrado após uma centena de quilómetros de viagem e umas dezenas de voltas ao rosário, pedindo ajuda envergonhado, por entre trocados arados na mão rasgada de rugas, para beber uma cevada e um pão com planta.

Erigido entre duas unidades de saúde enormes, não deixa de ser irónico o comércio em torno do desespero, como um interlúdio silencioso, quase venenoso, de todas as palavras que me moldam um comovido silêncio.

Levanto-me, peço outro café, adverte-me a jovem brasileira, sorridente, que muito café faz mal. “Não se preocupe, sangra-me de cada lado um hospital”.

Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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