OS naperons feitos de jornais e velhas listas telefónicas, recortados com o decoro próprio de quem suspira a vida e a mesma se verga sobre si, em deferência, ornamentam as prateleiras vazias de uma cozinha de chão de terra batida, negra. O tempo pára de cada vez que consulto a memória. Na Aldeia de Cima não há maior consolo do que uma lareira a crepitar na tarde de Outubro, lajes espessas, negras e sorridentes, panelas negras em tripé oxidado, traves cobertas de fuligem e as minhas calças penduradas num galho de austrália, a saborearem o braseiro dos grossos troncos ruborescidos. Três cachopos, na travessura cândida de escolher o mais profundo rego a percorrer, galochas esverdeadas e o futuro multicolorido pela frente, sem saber que, agora, esta tarde de Domingo me olha entristecida para o que não consigo vislumbrar.
Suspirava, a matriarca, bondade ao mesmo tempo que do fundo da arca tirava um tição negro em forma de pão caseiro, a faca rombuda que rasgava a côdea, a cebola lacrimosa sob o sal grosso e a caneca escura de um café fumegante que nunca consegui replicar. O maná bíblico saíra das escrituras e prostrava-se na tarde de um dia de semana maior que a nossa vida pueril. Três “tardalhos” em cuecas, a tiritar de frio, sorvíamos o café e ferrávamos a cebola salgada que se diluía no bolboso miolo do pão, enquanto o calor da lareira nos secava a roupa e a alma. Deus mostrara o paraíso, mas ainda me era pequeno o siso.
Algumas vizinhas tinham vindo à luz deste mundo pelas suas mãos experientes e saibrosas. Quando a parteira chegava, já os principais preparos estavam a plenos pulmões berrando como um cabrito tresmalhado num final de dia, parido em colmo, na bacia de água quente e as toalhas que pediam licença à candura das mãos experientes. Deus escolhe a dedo quem nos trazer a este mundo sem uma gota de medo. E sem muitos ais.
Nunca encontrei as palavras certas para entender a minha raiz de urze, a paixão pelo negro lume de uma tarde chuvosa, a navalhada firme num naco de pão, a cálida existência no olhar de paixão, o acolher sobre a asa de ganapos tresmalhados como filhos e netos, sem distinção. Urdi, durante a tarde, as palavras que dignificassem o seu sorriso quando atravessava a estrada para um beijo repenicado e um sorriso tímido e sincero, que fazia o firmamento corar.
Escrevi um soluço em forma de nuvem, uma amêndoa adocicada, um copo de vinho fino e a preocupação com as ovelhas e coelhos que, na sua inocência, preocupavam o espírito tresmalhado. O abraço prolonga-se na medida da saudade, o reconhecimento do privilégio de termos caminhado na sombra do seu avental é prova irrefutável de existência suprema. A humilde simplicidade rarefeita, pureza de uma vida de nove décadas e meia, suplanta todo e qualquer ensinamento humano, mundano.
Numa ascensão serena que o tempo admirara, o próprio Criador desceu e levou-a pela invisível e luminosa porta, entretanto aberta, chamando todas as estrelas de Julieta.
Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.