Antes que a demência venha apagar as intensas emoções que dão vida às recordações que trago na mente, e são também saudades daqueles que nasceram, cresceram e viveram na mesma casa em que nasci e acabei por perder, escrevo as palavras ausentes no dia a dia dos que, como eu, sobreviveram até agora, porque não permito que me roubem a meninice e a infância.

No percurso tortuoso de uma vida, vão-se quebrando as amarras que nos seguravam ao mundo, até ficarmos sozinhos perto dos lugares onde brincámos juntos e fomos muito felizes.

Há dias em que não conseguimos esquecer as histórias passadas. São aqueles em que lembramos os pedaços essenciais de nós, que se desprenderam para sempre da árvore genológica de que todos fazíamos parte.

Vão-se os nossos pais, os irmãos, os sobrinhos, os primos e muitos amigos, como se algum tresloucado devastador de vidas iniciasse um processo de destruição da mais bela flora da nossa presença neste mundo.

Éramos sete os que nasceram numa casa situada numa viela apertada muito perto de dois rios que, pela sua beleza e importância geográfica, marcaram as nossas e as vidas de muitos outros conterrâneos, para sempre.

Todos os da geração da família de que faço parte vieram, tal como eu ao mundo, na Rua da Torre em Rio Mau, aldeia de pescadores, de barqueiros e de mineiros. Outros familiares que nos precederam numa época antiga, de pobreza e fome que obrigou alguns a procurar subsistência na cidade do Porto e até no longínquo Brasil, deixaram a casa mãe, o ninho que viria a ser o mesmo de uma família maior, composta por pessoas que chegaram a prosperar a par de outros menos afortunados, mas todos obreiros e aplicados nas suas profissões e empreendimentos.

Os mais recentes, os derradeiros que nasceram naquela casa grande nesse tempo, foram o meu primo Augusto, eu e os meus irmãos, António e Joaquim. Durou pouco a nossa estadia nessa estreita rua, onde raramente o sol entrava e as pessoas se aglomeravam à porta da mercearia da minha mãe, nas compras de mantimentos, e principalmente das farinhas com que confeccionavam o pão familiar.

O meu primo Augusto foi o primeiro a abandonar a casa, indo viver para Pedorido, do outro lado do rio Douro, com os seus pais que montaram por lá negócios. Nós, os três irmãos, mais a minha irmã Aida e o meu irmão José Abílio, adultos, mas os dois ainda solteiros, migrámos para Sebolido, sede da freguesia com o mesmo nome, onde o meu pai tinha uma mercearia, nessa altura, já em casa própria.

Por aí vivemos juntos, até o meu irmão José Abílio e a minha irmã Aida casarem e irem viver para a sua terra natal.

Uns anos depois, veio o serviço militar obrigatório separar aqueles que os nossos pais tinham todos os dias à mesa da ceia. Eu fui para a Marinha, o meu irmão António para o Exército e o meu irmão Joaquim também para o Exército. Mais tarde, fomos os três simultaneamente para a guerra do Ultramar. Eu para Moçambique, eles os dois para Angola.

Ao fim de dois anos, voltaram a casa, eu seis meses depois. Após esse período trágico nas nossas vidas em que já tínhamos perdido as mais belas flores da nossa mocidade por via disso arruinada, pouco restava da alegria e da felicidade de outrora e da dos nossos amigos e companheiros de infância, quase todos vítimas inocentes de um momento histórico sem razão de existir. Uns morreram por lá no maldiçoado conflito, outros voltaram estropiados do corpo e da mente, despojados de sonhos e da natural felicidade da meninice e juventude. Velhos por dentro, desiludidos por terem sido criminosamente abandonados pela pátria por quem combateram, após anos de uma luta fratricida e injusta como o são todos as provenientes de incapacidades políticas que coagiram o país a utilizar armamentos de morte contra outros irmãos inocentes.

A vida continuou seguindo o seu itinerário natural, o tempo passou e levou quase tudo na sua eterna e lamentável voragem. Primeiro faleceu o meu irmão Hélder Fernando; depois o José Abílio e recentemente o meu irmão Joaquim. Desvaneceram-se como se fossem flores sacudidas por um vento estranho e traiçoeiro. Partiram, deixando o jardim da nossa infância sem as cores das primaveras que unidos vivemos, sem a alegria de outras épocas, ficando apenas uma indizível tristeza, lágrimas e lembranças a par de um vazio impossível de preencher nos nossos corações de irmãos e nos das suas esposas, filhos, netos, familiares e amigos.

É a altas horas da noite que acordo inquieto e sobressaltado, então, como se obedecessem a uma ordem superior, voltam mais vivas as recordações da meninice, os rostos deles aparecem-me na memória quase sempre a sorrirem para mim. Estendo os braços para lhes tocar nos rostos, mas fico com as mãos vazias, sem os conseguir prender na ternura de um abraço ou na doçura de um beijo.

Não sei o que haverá para além deste mundo e desta vida, mas rejeito a crueldade da morte que os roubou. Por isso, sinto-os a viver felizes no meu coração, nessas horas de sofrimento e profunda intimidade. Outras vezes em que a realidade impiedosa se sobrepõe às memórias sentimentais, débil, deixo fluir as lágrimas que se juntam a outros choros de pessoas que também os amaram e então, julgo que estou a viver um sonho, que ao acordar vou tê-los de braços abertos à minha espera na antiga casa velha, na rua onde nascemos. E nesse terreno puro e sagrado, excessivamente sensível, quase intocável, onde tudo permanece intacto, como se o vento, a casa, as árvores, as pedras do chão e os nossos companheiros de então ainda esperassem pelo seu regresso à rua e aos braços da nossa querida e saudosa mãe Albertina, deposito um ramo florido de saudades.

Manuel Araújo da Cunha (Rio Mau, 1947) é autor de romances, crónicas, contos e poesia. Publicou: Contos do DouroDouro Inteiro;  Douro LindoA Ninfa do DouroPalavras –  Conversas com um Rio; Fado Falado –  Crónicas do Facebook;  Amanhecer; Barcos de PapelCasa de Bonecas e Crónicas de outro Mundo.

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