A MANHÃ vai cedo ainda, tal como estas linhas. Temo não me chegar diuturnidade, nem vida, para poder esculpir todas as palavras que me brotam do granítico silêncio a que me voto. Estacionado contra a mão na margem esquerda do Douro, quase consigo ouvir Egas Moniz a gritar ao catraio Afonso Henriques “não vás por aí, ainda resvalas e lá se vai a nação” e de seguida no desabafo “a criançada não tem noção”.

Apenas um pai tem o condão de telefonar e, timidamente, rematar “só se puderes, eu compreendo, não te sintas na obrigação, não te prendas por mim”. Nada mais nos ata à vida como o amor de quem telefona e liberta com um “tens a tua vida”. Claro que tenho. E a minha vida é Tua.

Absorto, vejo ao longe no litoral uma neblina cinzenta assemelhada a um lençol puído. Peço silenciosamente ao Artesão destas paisagens, para o estender até o interior e abafar os jorros de fogo e como transformam o mundo num purgatório de inocentes. O telefone trina polifonicamente, as palavras ensonadas explicam o restante percurso pelo labiríntico empedrado, leva-nos ao sopé dum lugar onde não chega um carro, apenas uns degraus esculpidos na terra que sorri a quem passa. Até aqui Deus alcança.

Estacionado como posso, descarregamos o balcão, rodapés, tampo de granito (monção) e ferramenta. A porta da cozinha raspa no chão irregular e não abre na totalidade, não vá a vida sair de rojo e nos esvaziar do que somos. O pátio ornamentado de cordas retorcidas onde roupa baila ao sabor do vento parece um arraial para a festa da minha vida. (e o quanto lamento não me sobrar de tempo para o mais importante aqui, viver). Desmonta-se móvel antigo e banca, pedem-nos desculpa envergonhadamente por o chão estar sujo (em casa de gente pura, sujo é quem entra e repara), sorrimos, é normal, está escondido, soltamos em forma de sorriso e ajudamos a acartar o lixo.

O cabelo apanhado no topo da cabeça exibe uma cabeça capilarmente despovoada, o sorriso exibe uma boca que mastigou o pão pelo diabo amassado e, no entanto, envergonha os falsos sorrisos com que me tentam comprar os dias. De mãos em oração sorri ao ver o trabalho final e exclama-nos “ai! que tenha uma banca para a vida. Não que me sobre muito para viver”. Sorri-me. Olho o horizonte. A bondade arregala-me o marejar, ainda nem tudo está perdido.

Ao sair ofereço-me para fechar a porta, a mesma que não abre até final, perra, desgastando o chão num quarto de círculo em forma de arco-íris de uma só cor. Vejo. E reparo, sem acreditar. A porta não abria até ao fim propositadamente. Ela olha-me e sorri, desdentada. Atrás da porta, uma pomba zela dois ovos, o ninho tosco feito de aparas de lixo, os excrementos aqui e ali, a ave que me olha de esguelha e sorri “anda comigo para todo o lado, é para o padeiro, é para o sardinheiro, caga-me é tudo, mas eu gosto muito dela.”

É, por vezes, na mais recôndita e pobre viela que me apercebo da simplicidade da paz nesta existência. E de como é bela.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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1 COMENTÁRIO

  1. Muito agradável o modo como nos consegue transportar para um tempo e estado emocional de simplicidade e pureza, que tanta falta faz nestes tempos que vivemos.
    Muito obrigado por me proporcionar esta oportunidade de abstrair-me para um espaço e tempo elevado….

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