HAVIAS de ter ido, foi a frase que ouvi quando, ao sabor ameno do calor que a parede da cozinha transpirava, chegou à minha beira no cálido final da tarde de sábado. Os hinos monótonos a Nossa Senhora de Fátima ecoam pelo pequeno vale, agora despido, e aliam-se à fé trémula de quem se aflige no mundo, sem se deter muito nele. A banda sonora monocórdica, à guisa de veleidades supérfluas, dá o mote para a explicação da minha ascendência genética.

O caminho, para lados da margem esquerda do Douro, pelos socalcos de escórias naturais que a litosfera cuspiu, ainda que perto da estrada nacional 222, virava por caminhos de terra batida (e abatida) que a freguesia pariu. Foram necessárias umas centenas de metros percorridos a pé para revolver a distância entre a carrinha e a habitação, ilhargas e cabeceira, peseira e estrado, máquinas e colchão. Os muros empedrados assobiavam de solidão com a ajuda do vento. O rio dourado ali ao fundo, percorrido com opulência pelas barcaças aladas prenhes de turistas endinheirados, sorri pelas curvas de um relevo que as barragens abafaram. É agora navegável, pachorrento, senhor de si mesmo, órfão de Torga. O tempo progride. O homem agride.

As casas ladeiam o caminho, cogumelam-se como podem agora que os habitantes, por idade, por cansaço, vítimas do político abraço, sucumbiram à passagem do tempo e se fizeram ponte entre mundos.

Há ali umas casas que aproveitadas para turismo… Concluo o pensamento com o meu habitual negativismo, o turismo é-o para quem quer, uns em espelhos de água com vista para a pobreza, outros de garfo e colher. A vida quer-se, por ali, se longe da pedreira, na modorrenta existência de bem com ela mesma, a ver os montes branquearem entre o Marão e Montemuro.

Pelo meio do vazio moravam um punhado de pessoas simples, herdeiras Dele, esquecidas por quem se transeunteia nas tardes de Domingo entre canais de televisão, vendo os carros passarem, olhos no mundo, pés no chão, cigarro amortalhado ao canto da boca calada, no esgar dolorido de quem viu a vida passar por entre os dedos grossos e toscos que outros escravizaram.

O serviço foi feito. Mais do que o pagamento, acredito, vieram eles de vida ao peito.

A criança, de colo, estendia os braços como um jovem tojo a esbracejar e lutar por uma nesga de Sol e o maiorzito, uma tríade de anos a ver a vida desaguar em barcos de papel e caricas lançadas ao pé saibrento do caminho que ninguém percorre, pedia

– Dás-me um abraço?

E que há-de um homem fazer, com filhos assemelhados a irmãos, do que estender os braços poucos habituados a semelhantes ensejos, e, de olhos fechados, ajoelhar no soalho e aceitar a inocência pueril concedendo-lhe os seus desejos?

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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