QUANDO o vento oscila no percurso como um puto feliz num baloiço improvisado, deixo-me traquinar e deixar que o casaco desapertado flutue a seu bel prazer. Os muros, menores agora, escalam a geografia de um destino que se faz cada vez mais depressa num percurso onde me perdi porque saberia onde me encontrar. Tenciono permanecer aqui, na medida que me procuro por entre as barítonas noites altas de um tempo que se faz mais baixo. Já não se espremem as casas, nos ferrolhos orgulhosos gravetados por mãos austeras cuja calosidade amansava no rebordo quente de uma tijela de caldo. Agora, qualquer sonho é um escaldo, de solidão e imensidão, ou solidimensidão, vertendo vapores aqui e ali porque o lume com que se tempera a simplicidade tende a tremeluzir e deixar, também aqui e ali, pequeníssimos fios de uma aletria amarelada por alturas do Natal. Dir-me-iam que agora ninguém leva a mal. Talvez seja verdade, mas olhando o desnudado pulso onde não cabem heranças mais do que erguer o peito num inspirado cálido anoitecer alaranjado, quase que a vida nos faz pensar sermos pobres.

É aqui mesmo que me deixo descansar no alto da noite, sobre a pedra falheira que me viu crescer a caminho da escola, a caminho de casa, a caminho do caminho, olhando-me ascendido a um sonho em rota de rendilhado estelar que me tacteia como se fosse, algures, ser alguém. Assim, sentado, pés no argiloso gretado que o tempo comeu, como me comerá a mim, cotovelos assentes nos joelhos, ergo a cabeça enquanto um insecto nocturno cujo nome desconheço, nome e raça, gravita a minha cabeça. Está morna a pedra, ainda, ou talvez esteja eu ainda morno, parado, saboreando lentamente o ar nocturno e aproveitando que poucos passos aqui passeiam, poucas vozes aqui volteiam, apenas eu a escutar os meus risos inocentes de criança, sacola ao ombro, pontapés na poeira de um caminho desempedrado e crocitares que aprendi a desmistificar. É aqui ainda que estou, anotando mentalmente tudo aquilo que escreveria num bloco assim que pudesse, não fosse o caso de me esquecer, o que veio, sempre, a acontecer. Do outro lado mira-me bonacheirão o antes gigantesco inclinado muro, a meus pés, as ervas dispostas em circular, quase espiral, exibem o que parece ter sido o ninho de um animal, envolto em si mesmo, coberto pelo estelar edredão que o universo brinda a quem se sabe ser animal, o focinhito encostado às patas traseiras, ou ao ventre, ou a outro animal que com ele se possa ter apoderado do que sabem eles não ter pertença, ou não o saibam, por serem animais ou, por feliz acaso, não serem hominais.

Desço quando me parece ouvir alguém vindo no caminho, acelero o passo e sacudo das calças, enquanto ando, o musgo e algumas pedras que pretendem fazer o caminho comigo. Ao longe pequenos tremeluzentes led’s iluminam a noite, brancos e vermelhos, coletes reflectem caminhantes irreflectidos ou talvez reflexos da saudade que sinto de ver um pirilampo.

O meu caminho é agora de todos os que caminham e, talvez por isso, me sinta saudoso de ter na mão o percurso para a escola, a linha da vida que me olhava, de soslaio, como se fosse esquecer-me dela.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publicou regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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