QUE paz e que abandono se estenderam aqui no muro ao fundo das escadas a pouco mais de um metro do asfalto da Rua da Estrada. Um  sol mortiço por momentos escondido mas deixando a pedra quente, é um tudo-nada de felicidade canina suficiente para puxar a brasa ao descanso, dormir serenamente e esquecer tudo, o ruído dos automóveis e das motas, o frenesi das pulgas, a comida que não aparece, a matilha do costume a marcar presença por haver cadela com cio, rumor de coelho ou rato ou não interessa, os humanos inconstantes sempre imprevisíveis e mal regrados.

Assim, os pensamentos soltam-se facilmente, a cores e em ambientes calmos de lagos, passarada e flores brancas, azuis e douradas compondo um cenário parecido com o que certos animais julgam ser sonho ou mundo mais que perfeito.

Pensava o Goya (que não era tolo) numa das suas gravuras a que chamou Caprichos (1799), que o sono da razão produzia monstros e ilustrava isso com um desenho de um racional bem vestido a dormir sobre a secretária, tendo atrás de si um pesadelo de animais monstruosos, ameaçadores. Pois…, coisa de febre iluminada, fruta da época numa Espanha retrógrada, os franceses a estrafegar tudo, a Europa em rebuliço napoleónico e as ideias a cavalgar contradições e inquietudes. Como quase sempre. Pelo sim, pelo não, na edição dos Caprichos que está no Museu do Prado, o pintor escreveu que: La fantasía abandonada de la razón, produce monstruos imposibles: unida con ella, es madre de las artes y origen de sus maravillas. Como podia ser de outra maneira? Até um irracional a dormir vê isso com a maior das clarezas e com a primeira frase por aquela ordem ou ao contrário. Palavra de cão, mais amigo do homem que ele próprio dos outros (homens).

Álvaro Domingues (Melgaço, 1959) é geógrafo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, onde também é investigador no CEAU-Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo. É autor de A Rua da EstradaVida no Campo e Volta a Portugal.

Publicado originalmente em 5 de novembro de 2015

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2001
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