PORQUE as ideias são como as cerejas, a propósito da publicação de “A fome apátrida das Aves”, desafiamos Francisco Duarte Mangas a atirar sobre lebres perguntas. A caçada foi rica e variada: temos respostas que são como a carriça, de biografia mínima, outras como a andorinha, a contrabandear o tempo (a infância é a que tem mais procura) e outras como a gralha, a reinventar a língua. Para facilitar a estranha veação, não vimos o feitor e pudemos entrar e sair sem sobressalto na brévia. Para que conste, não levamos o furão por ser uma palavra bravia.

Por Paulo Moreira Lopes

Quando escreve quer-nos falar ao ouvido?

A poesia, como eu a atendo, é um pouco isso: o murmúrio, quase inaudível, a desprender-se da página. Ou talvez seja a palavra a emigrar (a salto) do seu próprio corpo, e nos fala ao ouvido para a não denunciarmos.

Costuma ter muitas palavras deslembradas nos dedos?

Encontro por vezes essa família de palavras. São como moedas antigas, perderam-se na memória: enxugo-as, elas resgatam o brilho.

É verdade que, afinal, sempre tem tudo, ou seja, todas as palavras que disse e não disse?

Essa verdade aplica-se a quem escreve e a quem lê. A toda a gente, afinal. Junto palavras, como quem recolhe o feno, no alto do estio, e o alpendre ilumina-se pelo inverno dentro de tépida fragrância. Como se esse gesto fosse a nossa vida.

Se brévia, apesar de breve (também será lebre?), não é beneditina palavra, então será o quê:

– a memória da infância (tempo) que de enxurrada invade o presente?

– o quintal (lugar) onde costuma espairecer, como se fosse um recreio?

– uma simples brincadeira com a palavra?

A minha brévia é a palavra brévia. No seu íntimo ou no espaço seu espaço real como uma tangerina caberá tudo o que diz – e ainda mais.

Se para o cristão, a oração é o espaço privilegiado do encontro com Cristo, para si o poema é o espaço privilegiado do encontro com quê ou com quem?

Encontro com a claridade, com a luz (Cristo é a luz), com o idioma das árvores ou o segredo das andorinhas. O poema é também o encontro com o outro, o caminho que se abre à revolta e espevita a luta. Os milicianos das Brigadas Internacionais, na Guerra Civil de Espanha – só para dar um exemplo – , tomavam o fogo da palavra antes de avançar para a frente, para a linha da morte. Como se a palavra fosse mais forte que as balas e as bombas fascistas. E quando eram feridos, conta George Orwell, cantavam uma canção que tinha um estribilho a terminar assim: “Una resolución: / luchar hast’al fin!”

Não sente remorsos por ter abatido à fisga, durante a infância, os frutos esquivos do Inverno?

Na altura, eram mesmos pássaros. As metáforas vieram depois redimir esse passado.

Na sua infância as carriças tinham uma biografia mínima por causa da sua fisga e da dos seus amigos?

A carriça é a ave mais pequena e irrequieta que conheço: daí a sua biografia mínima, imprecisa.

Para si uma longínqua palavra é uma palavra que se encontra lá longe na sua infância?

Longínqua palavra é a que me sobressalta e, ao certo, nem sei o motivo. Traz a infância, talvez. Tudo traz preso a si vestígios da infância. A palavra feitor é longínqua e agora não me sobressalta – mas perseguiu-me, quando a sua autoridade nos impedia de entrar nos quintais (brévias?) dos senhores da terra, lá onde a fruta madura insultava a nossa fome.

Gostava de ser dono de uma quinta com um muro trabalhado e uma cancela rigorosamente ao centro?

De repente, a canção de Adriano Correia de Oliveira, “Erguem-se muros em volta/ do corpo quando nos damos/ amor semeia a revolta/ que neste instante calamos”. Muros, não; trabalhados, pior ainda. É preciso semear a revolta na quinta.

Sofreu muito com a entrada nos entas?

O tempo é um rio irrevogável, temos de preparar a barca.

Prefere caçar aves ou palavras?

A caça de pena exige mestria, rapidez de gesto e longas e rápidas caminhadas. Nunca entrei nessas caçadas. Prefiro a estranha veação, que é a escrita.

Com quem aprendeu a arte da enxertia de plantas?

Eu nasci numa terra de camponeses pobres.

E de palavras?

Na terra dos camponeses pobres, uma vez por mês, aportava a carrinha da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian.

O seu filho concorda em ser personagem dos seus poemas?

Tenho três filhos. Cada um acha que a personagem é o outro.

O seu filho já aprendeu a arte de enxertia de plantas? Nota-se muito a cicatriz?

Irá aprender, a linguagem da terra é a linguagem dos homens. A cicatriz, na personagem, já não se vê.

Nunca foi a Esmolfe comprar exemplares de maçã-bravo para plantar? Prefere comprá-los na feira?

Esmolfe é uma espécie de lugar sagrado, conheço-o pela maçã – e só isso basta. A enxertia, sem pecado, permite encontrar a macieira em qualquer parte. As primeiras que plantei, comprei-as na feira de Vila da Conde.

Se diz que tem memória artesanal das coisas, quer dizer que se considera um artesão?

Sempre fui, é verdade, um artesão. O meu grande sonho, enquanto artesão, consiste em moldar o silêncio para despertar a revolta – a que falava o Adriano.

É verdade que são de palavra os homens que se afeiçoam às árvores?

Não tenho a menor dúvida.

Sabe dizer quantas árvores habitam uma palavra só?

Floresta é uma palavra só.

Se o pousio corrige as palavras, isso significa que há palavras mal escritas, mal ditas ou malditas?

As malditas eu afago, retiro do pousio. As palavras malditas dão a melhor semente da revolta.

Também acredita que a escrita é a arte de indagar a morte?

Mais do que indagar. A escrita é a arte de humilhar a morte e os seus rios irrevogáveis.

Lembra-se do zelador da macieira quando escreve macieira ou quando escreve vara?

Lembro. A miséria o fez violento.

Tal como a fome apátrida das aves deixa marca nos dióspiros, a fome apátrida da sua memória também deixa marca nos seus poemas?

Nos poemas e na minha forma de ver o mundo.

Está a ser boa a colheita na macieira enxertada?

Enxertar uma macieira é fácil… e S. Frutuoso bota o fruito.

(publicado originalmente em 27 de outubro de 2013)

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