ALBERTO Luís e Agustina Bessa-Luís estavam casados há 72 anos. A romancista costumava contar que colocou um anúncio no jornal para encontrar um marido, uma “pessoa culta”. Teria já decidido que aquele que, ao abandonar a sala onde a entrevista se faria, olhasse para trás, seria o escolhido. Alberto Luís foi à entrevista com uns amigos, também candidatos (diz-se que teria sido uma aposta) e olhou para trás.
O coração falhou e Alberto Luís talvez nem tenha dado por isso. Aos 95 anos, viveu até ao último dos seus dias entre uma dedicação senhorial às pequenas tarefas e um encanto sério pela vida e pela cultura. Ainda encontrou maneira de ir à frente de Agustina, a mulher dos últimos 72 anos, para deixar tudo em ordem quando a sua hora chegar. (Mesmo que alguns já se lhe refiram como se estivesse morta, a Sibila permanece entre nós, diminuída desde que sofreu um AVC em 2007 mas, de acordo com a família, com qualidade de vida).
Na sua crónica no Público, Paulo Rangel conta que as mais recentes notícias que tivera dele davam-no ultimamente com um desses infatigáveis interesses por tudo o que tinha a ver com o franciscanismo, e isto serve bem de ilustração à atitude de um eterno estudante, esquecido da idade, sem que ninguém possa examiná-lo pelo gosto puro de conter em si imensidades. Para quê? Para nada. A inutilidade que é a vertigem mais admirável do grande saber. De resto, como sublinha Rangel, Alberto Luís terá sido «um dos grandes vultos da cultura portuguesa», não da «produzida e publicitada», mas daquela que hoje mais nos falta: a cultura que serve para viver, tornar a vida maior.
Da história deste «advogado exímio, jurista brilhante e enciclopédico», da sua discrição ao longo de décadas, apoiando Agustina Bessa-Luís na criação da obra que viria a forçar as portas e se impor-se sobre o patriarcado das letras nacionais, dessa história sobressai ainda o mito menor de como tudo começou. A escritora confiou que os deuses haveriam de afiar o acaso para não fazê-la perder tempo no encontro com o seu destino. Bastou-lhe pôr um anúncio no jornal O Primeiro de Janeiro, pedindo para se corresponder com uma pessoa culta. Alberto Luís, que então estudava Direito em Coimbra, respondeu e os dois residiram nesta cidade até que terminasse o curso. Casaram-se a 25 de julho de 1945 na Invicta, cidade onde viveriam toda a vida a partir de 1950.
À Renascença, em 2012, Alberto Luís revelou a trabalheira que lhe dava decifrar a letra da mulher e batê-la à máquina: «Todos os romances dela eram escritos em três meses. Ela por ano só trabalhava três meses, mas trabalhava a sério, como um operário, todos os dias fazia uma página destas [A3] e eu passava à máquina. Decifrava, descriptava, às vezes ia perguntar-lhe o que era aquilo e ela só revia quando vinham as provas tipográficas, que eu lhe lia em voz alta e ela seguia pelo manuscrito».
«Era a única intervenção dela na correção», adiantou Alberto Luís, «Alterava, às vezes, uma frase, umas palavras. Toda a minha vida a decifrar, a descriptar, porque aquilo é muito difícil para quem não está habituado sobretudo em certas fases, porque ela tem fases de letra minúscula e outras de letra maior».
Em entrevista ao SOL, a neta, Lourença Baldaque – que com ele se ocupou da fixação do texto dos livros de Agustina cuja publicação foi assumida pela Relógio D’Água após o desaire da Babel, que incorporara a Guimarães Editores em que Agustina sempre foi publicada – contou como o avô não se limitava a apoiar a mulher passando a limpo os seus textos, mas muitas vezes levava-lhe livros, os que ela queria e os que escolhia ele: «Ficavam até muito tarde a conversar», lembra a neta. «Era (e é) um casal muito intelectual, nas suas conversas, discutiam imenso, imensos assuntos».
Mais do que a cumplicidade, do que o terem-se dado bem toda a vida, Lourença não mostra reserva ao afirmar: «Acho que a minha avó, como escritora, deve muito ao meu avô». E questionada sobre a forma como reagia perante o sucesso literário da Agustina, a neta responde: «Nunca me apercebi de nenhum tipo de problema, pelo contrário. Aliás, esta vontade de publicar os artigos, de fazer a Opera Omnia, etc., resulta muito do desejo do meu avô».
Paulo Rangel insiste que Alberto Luís nunca se deixou ficar na sombra da mulher, e que «nem a fama nem o carisma da sua companheira o ofuscavam ou ensombravam». Considera-o um príncipe renascentista, pelo modo como «vivia por entre iluminuras e gravuras para ilustrar afirmações e colorir conversas». Sem a necessidade de assumir evidência pública, como nota Lourença Baldaque, «foi sempre um advogado muito requisitado». «É fascinante ouvi-lo falar de Direito, imensas frases que ele me disse ficaram-me sempre na cabeça».
Se por trás de uma grande mulher não é tão comum estar um grande homem, a memória de Alberto Luís talvez goste de se passear na sombra dos grandes romances que continuaram a ser lidos por gerações, e onde sobre os homens talvez não recaia um juízo mais severo porque nem é preciso chegar ao fim das contas p para perceber que Agustina teve a sorte imensa de ter alguém à sua altura, alguém que desafiasse o seu génio e, talvez mais importante, que lhe permitia repousar.
Por Diogo Vaz Pinto publicado in SOL