O ESCRITOR Bento da Cruz, de 90 anos, autor, entre outras obras, de “O lobo guerrilheiro”, morreu, esta quarta-feira, no Porto, onde residia desde 1971, disse à Lusa fonte editorial. Segundo a mesma fonte, as cerimónias fúnebres iniciam-se esta quarta-feira, pelas 17 horas, na Igreja das Antas, no Porto, de onde a urna sairá na quinta-feira, pelas 11 horas, para a aldeia natal do escritor, Peirezes, no concelho de Montalegre, onde, a partir das 13 horas, será velada até às 17 horas, quando se realiza o funeral.
Bento da Cruz, licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra, era referenciado como o “príncipe do planalto barrosão”.
No início da carreira, em 1955, estabeleceu consultório médico em Souselas, na Beira Litoral, e, a partir de 1956, na aldeia de Pisões, no concelho transmontano de Montalegre, onde providenciou assistência médica gratuita a muitos conterrâneos.
Antes da faculdade, Bento Gonçalves da Cruz ingressou na Escola Claustral de Singeverga, dirigida por monges beneditinos, com o fito de seguir a vida religiosa.
Concluiu com distinção o antigo Curso dos Seminários e foi diretor literário das revistas estudantis O Colégio e Claustrália. Em 1945 entrou no noviciado e, no ano seguinte, abandonou a vida consagrada.
Literariamente estreou-se em 1959 com a obra “Hemoptise”, assinada sob o o pseudónimo de Sabiel Truta. Ao longo de 50 anos de carreira literária publicou cerca de 25 títulos, entre contos, romances, biografia e crónicas, que compilou em três volumes sob o título “Prolegómenos”, o mesmo da coluna que regularmente assinava no jornal Correio do Planalto, por si fundado depois do 25 de Abril de 1974.
“Histórias da vermelhinha”, “Planalto de gostofrio”, “Histórias de lana-caprina”, “O tetábulo das virgens loucas”, “Victor Branco: Escritor barrosão, vida e obra”, “Camilo Castelo Branco: Por terras de Barroso e outros lugares” e “A Fárria”, com que celebrou, em 2010, cinquenta anos de carreira literária, são alguns dos seus títulos.
O autor recebeu o Prémio Fialho de Almeida, da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos, em 1973, por “Contos de Gostofrio e Lamalonga”, o Prémio Literário Diário de Notícias e de Ficção da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos, em 1991, por “O lobo guerrilheiro”, e ainda o Prémio Literário de Investigação da Câmara Municipal de Montalegre (CMM), por “Victor Branco, escritor barrosão – vida e obra”, em 1995, assim como os prémios literários de ficção, da CMM, por “O retábulo das virgens loucas”, em 1996, e o do Eixo Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa, por “A loba”, em 1999.
Publicado in Jornal de Notícias
Conheço Bento da Cruz há mais de vinte anos*. Neste espaço de tempo, ele abeirou-se da idade madura, eu afastei-me da juventude. O tempo. A serenidade do tempo é cruel mão invisível, deixa marca por onde passa. Falo do tempo para lembrar a força maior deste escritor, avesso à efémera claridade mediática, que alguns em vão tentaram empurrar para o silêncio. Bento da Cruz é um escritor do seu tempo. Do nosso tempo. Parte substancial do tempo mais negro do século vinte português entra bruscamente na sua obra singular e perdurará nos tempos que hão-de vir. Porque, melhor do que ninguém, Bento da Cruz trata a memória como matéria perecível. E na memória há palavras privadas de afecto. Isto é: precisam de respirar na página, porque o nosso célere quotidiano padronizado as esquece – e palavra esquecida nem lugar lhe é destinado em língua morta.
A obra literária do autor de O Lobo Guerrilheiro é, sem dúvida, um abrigo de alguns dos nossos mais genuínos vocábulos – que em lenta aluvião se dirigiam ao silêncio final – renascidos, devolvidos à comunidade falante, através de espantosas personagens que são outras das memórias levantadas do chão. O paciente ofício de limpar e enxugar a palavra – perdida nos matagais por pastores enamorados, contrabandistas esquivos ou outros transumantes em fuga que a roda do tempo amarfanhou – é uma das dádivas deste escritor ao nosso tempo, às gerações vindouras. À Língua Portuguesa.
O diálogo vivo, musical, depurado (dir-se-ia de guião cinematográfico) surge como outro dos contributos de Bento da Cruz para a Literatura portuguesa. É a fala mais genuína do povo, um povo concreto – marcado pela miséria, acossado por senhores terrenos e temente a Deus – que ao longo de séculos talhou a paisagem agreste. Um povo, no entanto, capaz de grandes gestos de humanidade mesmo em situações adversas. A solidariedade dos humildes é a mais sincera de todas.
Os livros de Bento da Cruz preservam essa memória (matéria perecível) do povo do Barroso. A dignidade do povo dos grandes gestos de humanidade. O povo do Barroso que soube acolher os fugidos, quando “os maus ventos” uivavam do outro lado da fronteira. A memória da Guerra Civil de Espanha, revivida ou reescrita do lado de cá, emerge como outro dos legados de Bento da Cruz aos homens do nosso tempo e às gerações do futuro. Uma mão chega para contar os escritores que, antes de Bento da Cruz, ousaram atear esse passado sangrento. Mas o autor de O Retábulo das Virgens Loucas não teme a memória, ele conheceu guerrilheiros rojos e outros fugidos. Homens acossados pelos franquistas e pelos fascistas portugueses, homens sem pátria, com os sonhos libertários tolhidos, privados de quase de tudo. Essa memória, enfim, jamais poderia ser olvidada. E não foi. Bento da Cruz evoca a Guerra de Espanha e traz à claridade a dignidade do seu povo. A dignidade em tempos conturbados é um tesouro incalculável: guardar silêncio, não denunciar às autoridades a presença de bandoleiros (as autoridades portuguesas designavam assim os refugiados de Espanha) era crime. E houve, por muitas aldeias do Barroso, homens e mulheres que não traíram: deram abrigo, o pão e o vinho a esses homens transidos. Ao transportar para a nossa Literatura a heróica dignidade das gentes do Barroso, nas décadas de trinta e quarenta do Século XX, Bento da Cruz enobrece todos os portugueses que recusaram a tirania. E aqui reside outra originalidade da sua obra: voluntariamente localizada, é certo, mas os sentimentos não têm fronteiras. Bento da Cruz é um escritor do Barroso, um grande escritor português.
Por Francisco Duarte Mangas publicado in Diário de Link
*(Texto lido na homenagem ao escritor, no seu 80.º aniversário, em Montalegre)
A vida dos homens é também a sua memória. E Bento da Cruz é também a grandiosa memória das suas palavras que perdurarão.
Por si e por Barroso.
Saudações Barrosãs.