Adoro todos os filmes que começam com chuva:
com chuva fazendo tranças no vidro da janela
ou escurecendo o vestido da mulher que estava a secar
ou escorrendo pelo rosto dela;
uma grande bátega de chuva
através do roteiro vazio e da partitura
antes do acto, antes do culpado,
antes que a lente passe pela moldura
até à solitária mulher sentada
ao lado de um telefone silencioso
ou do vestido estragado na erva molhada
ou da rapariga que sai do viaduto,
todas as coisas fluem dessa fonte
e juntam-se na corrente fatal.
Por mais ruim ou longo que seja
um filme assim não nos pode fazer mal,
mesmo quando o sotaque nativo aparece
ou se deixa de ver a explosão
ou quando o discurso dela começa a trair
a sua adaptação do guião
quando acordamos na noite fria
numa sarjeta estrelada, vendo o ouro
a correr do letreiro a néon da drogaria
e eu lendo essa linha brilhante:
esquece a tinta, o leite, o sangue –
a água lava tudo por onde passa
nós os filhos e filhas da chuva
levantamo-nos sem que nada nos impeça
e nada disso, nada disso interessa.
tradução Jorge Sousa Braga