Um homem no Marquês, à porta de um café. Setenta e muitos. A bengala encostada à parede. Com uma moeda, risca uma raspadinha. «Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!» Risca uma vez, risca outra. «Oh, meu Deus!» A coisa está em marcha. A moeda risca, risca, risca uma e outra vez ainda.
Nada.
Larga a raspadinha no lixo. Tira um maço de tabaco do bolso e acende um cigarro. Pega na bengala. Desce a Constituição, fumando. →
34. Sentado diante da folha.
Sentado diante da folha três dias.
Sentado diante da folha cinco dias. E «as coisas, dentro de mim, a gritar por ser ditas» (Llansol).
Quando não são ditas, quando falta garganta e talento para gritá-las, as coisas transformam-se em veneno.
Dentro de mim, há uma bolha de veneno.
Não há remédios rápidos para esta doença. É deixar ferver até rebentar. →
33. O fruto que sempre conheci como magnório chama-se agora nêspera. Na verdade, o fruto sempre se chamou nêspera, menos no Porto e no Minho (que, no fundo, são a mesma coisa), onde era conhecido como magnório. Ignoro a origem do regionalismo. Em todo o caso, é uma mudança estranha. Não se fala de nêsperas, imagino eu, na televisão, nas telenovelas e telejornais. As frutarias da cidade, como os talhos e as padarias (onde os pães de trigo vulgares se chamam moletes), são talvez dos últimos locais onde ainda se conservam os nomes antigos e as vogais fechadas. Onde é que a senhora da frutaria, tripeira de Paranhos, foi, pois, desencantar o termo nêspera? É uma mudança para pior. Magnório é muito mais redondo, sumarento, luminoso. Imagino Nabokov a dizer a palavra: Mag-nó-ri-o, a ponta da língua faz uma viagem de quatro passos pelo céu da boca abaixo e, no quarto, recosta-se e sonha. Mag. Nó. Ri. O. →
32. Nas finanças, o funcionário dirige-se a mim usando um nome que não é o meu. Por lapso, mudou ligeiramente o apelido. Também acontece, por vezes, nas cartas e encomendas que recebo por correio. Já fui Amaro e Amora. Fico a pensar como será essa pessoa cujo nome é tão parecido com o meu, que tem a mesma morada, mas que só existe por engano na cabeça do funcionário. Será mesmo um engano? →
31. Um dia de férias no meio de uma semana de trabalho. Tarde na esplanada a ler. E a permanente sensação – uma impressão estranha, hostil, obscura – de que estou em falta com alguém ou alguma coisa. O sentimento de um escravo. →
30. Já passaram cinco meses desde que estou em casa. Talvez mais. Perdi a conta ao tempo. A gaivota que nasceu no telhado em frente já tem o tamanho de um pato pequeno. Move-se de um lado para o outro, sobre as telhas, com a mesma destreza com que um tipo sóbrio caminha numa rua de paralelos. →
29. Nos últimos dias, o governo não se tem poupado a esforços para convencer as pessoas a saírem de casa e a fazerem compras. Apesar disso, as ruas e as lojas continuam quase vazias. Os portugueses estão a resistir ao desconfinamento. «Por causa do medo», dizem os jornais. →
28. Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a «Poesia Reunida», em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século. →
27. Nos serviços do cartão de cidadão, o funcionário mandou-me tirar os óculos para a fotografia. Depois, perguntou-me se estava satisfeito com a imagem que aparecia no ecrã da máquina. Respondi que sim, embora a fotografia mostrasse um tipo sem óculos e bastante desfocado, que eu jamais conseguiria reconhecer. →
26. Para onde quer que se olhe, há gruas a disparar em todas as direcções sobre a cidade. Fortalezas voadoras a competir com pardais e gaivotas pelo domínio do espaço aéreo. No chão, os manobradores parecem miúdos com joysticks a olhar para o céu. Heróis de um jogo de guerra, prontos a conquistar mais um metro quadrado de terra, casa após casa, rua após rua, bairro após bairro, um dia após o outro. →
25. Aquelas pessoas que escrevem um nome, uma frase, uma declaração de amor no cimento ainda fresco. Qualquer coisa que perdurará anos, décadas, até à próxima campanha de obras públicas ou até à próxima guerra. Passamos pela inscrição todos os dias e já não damos por ela. É como se não existisse. Exactamente como certos livros nas bibliotecas. →
24. Da mesa do café, observo o casal na esquina da Constituição com Faria Guimarães. Têm à volta de cinquenta, talvez um pouco mais. Despedem-se com um beijo e um breve toque de mãos. Ela sobe a Constituição, ele espera que o semáforo passe a verde para descer Faria Guimarães. Antes de atravessar a rua, ele lança ainda um olhar na direcção dela, e quase consigo ouvir a pergunta a ressoar dentro da sua cabeça. A velha pergunta. A terrível, a negra pergunta: «Será a última vez que a vejo?» →
23. Dedicatória na primeira página de Três poetas da própria existência, de Stefan Zweig, livro que encontrei, entre bibelôs de porcelana, sapatos de senhora e calças de ganga usadas, hoje mesmo, na Feira da Vandoma. →
22. Quando o Manuel Resende regressou a Portugal, depois de longos anos emigrado em Bruxelas, instalou-se numa casa nos arredores de Santarém. →
21. Um dos contos mais famosos de Virgilio Piñera narra a história de um homem que se alimenta literalmente de crianças pequenas, «de poucos meses». Uma espécie de apreciador swiftiano das qualidades gastronómicas da carne de criança.
20. 2017 está a ser um ano bom. Em pouco mais de dois meses, conseguimos partilhar com amigas e amigos, conhecidas e desconhecidos, leitores e engenheiros astrofísicos, dois livros de que nos orgulhamos até à baba: →
19. Um homem acorda a meio da noite. Senta-se na beira da cama, coça as costas, resmunga qualquer coisa, tacteia o chão com os pés à procura das pantufas. Encontra as pantufas ao fim de sete segundos, mais coisa menos coisa, ajeita-as com a pontinha dos dedos e calça-as. →
18. Boniface desejava ganhar asas e voar. Um desejo que, obviamente, não tem nada de extraordinário. Em toda a parte há gente que gostaria de voar, mas não como ele. →
17. De todos os objectos que existem no mundo, o guarda-chuva é aquele que presta ao homem os mais assinalados e distintos serviços. →
16. O que é pior do que um calo no pé? Eu respondo: óculos sujos e embaciados. Pode correr-se o universo inteiro que não se encontrará coisa pior. →
15. Havia já algum tempo que Goetz Hebler se sentia vigiado. Voltando-se, quando caminhava pela rua, não avistava vivalma; mas tinha a certeza de que alguém o observava. →
14. Era uma vez um homem que estava preso ao céu por um fio. Se o fio era real ou apenas aparente, não me atrevo a afirmá-lo, visto não possuir nenhuma pedra-de-toque que me permita distinguir, sem margem para dúvidas, o verdadeiro do falso. →
13. Era uma vez e várias vezes um homem que mudava de cor segundo as condições meteorológicas. A pele exibia um inconfundível azul-celeste em dias de sol, era turquesa quando fazia muito calor, damasco com nuvens escuras →
12. Um homem passeia-se de eléctrico por toda a cidade. Há vários dias que não faz outra coisa. Na verdade, é a única coisa que sabe fazer. →
11. Definições de Lit.ª →
10. aforismo um pouco longo →
9. Circunstâncias favoráveis →
8. A roda →
7. Sacudir o pano do pó à janela: →
6. No seu íntimo, o homem carregava um grande segredo. Só não conseguia lembrar-se que segredo era esse. →
5. Abriu um livro para enganar o estômago. →
4. Deus acredita em que Deus? →
3. Informação ao leitor →
2. Gralhas →
1. Conheces Manuel Resende? →