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Rui Manuel Amaral (1973)

Rui Manuel Amaral (1973)

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Um homem no Marquês, à porta de um café. Setenta e muitos. A bengala encostada à parede. Com uma moeda, risca uma raspadinha. «Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!» Risca uma vez, risca outra. «Oh, meu Deus!» A coisa está em marcha. A moeda risca, risca, risca uma e outra vez ainda.
Nada.
Larga a raspadinha no lixo. Tira um maço de tabaco do bolso e acende um cigarro. Pega na bengala. Desce a Constituição, fumando. 

34. Sentado diante da folha.
Sentado diante da folha três dias.
Sentado diante da folha cinco dias. E «as coisas, dentro de mim, a gritar por ser ditas» (Llansol).
Quando não são ditas, quando falta garganta e talento para gritá-las, as coisas transformam-se em veneno.
Dentro de mim, há uma bolha de veneno.
Não há remédios rápidos para esta doença. É deixar ferver até rebentar. 

33. O fruto que sempre conheci como magnório chama-se agora nêspera. Na verdade, o fruto sempre se chamou nêspera, menos no Porto e no Minho (que, no fundo, são a mesma coisa), onde era conhecido como magnório. Ignoro a origem do regionalismo. Em todo o caso, é uma mudança estranha. Não se fala de nêsperas, imagino eu, na televisão, nas telenovelas e telejornais. As frutarias da cidade, como os talhos e as padarias (onde os pães de trigo vulgares se chamam moletes), são talvez dos últimos locais onde ainda se conservam os nomes antigos e as vogais fechadas. Onde é que a senhora da frutaria, tripeira de Paranhos, foi, pois, desencantar o termo nêspera? É uma mudança para pior. Magnório é muito mais redondo, sumarento, luminoso. Imagino Nabokov a dizer a palavra: Mag-nó-ri-o, a ponta da língua faz uma viagem de quatro passos pelo céu da boca abaixo e, no quarto, recosta-se e sonha. Mag. Nó. Ri. O. 

32. Nas finanças, o funcionário dirige-se a mim usando um nome que não é o meu. Por lapso, mudou ligeiramente o apelido. Também acontece, por vezes, nas cartas e encomendas que recebo por correio. Já fui Amaro e Amora. Fico a pensar como será essa pessoa cujo nome é tão parecido com o meu, que tem a mesma morada, mas que só existe por engano na cabeça do funcionário. Será mesmo um engano? 

31. Um dia de férias no meio de uma semana de trabalho. Tarde na esplanada a ler. E a permanente sensação – uma impressão estranha, hostil, obscura – de que estou em falta com alguém ou alguma coisa. O sentimento de um escravo. 

30. Já passaram cinco meses desde que estou em casa. Talvez mais. Perdi a conta ao tempo. A gaivota que nasceu no telhado em frente já tem o tamanho de um pato pequeno. Move-se de um lado para o outro, sobre as telhas, com a mesma destreza com que um tipo sóbrio caminha numa rua de paralelos. 

29. Nos últimos dias, o governo não se tem poupado a esforços para convencer as pessoas a saírem de casa e a fazerem compras. Apesar disso, as ruas e as lojas continuam quase vazias. Os portugueses estão a resistir ao desconfinamento. «Por causa do medo», dizem os jornais

28. Habituei-me a imaginar que o Manuel Resende sobreviveria a tudo. Em 2017, esteve hospitalizado durante semanas em estado muito grave. Alguns amigos temeram perdê-lo. A verdade é que voltou directamente dos cuidados intensivos para lançar a «Poesia Reunida», em 2018. O livro de poemas português mais importante deste século. 

27. Nos serviços do cartão de cidadão, o funcionário mandou-me tirar os óculos para a fotografia. Depois, perguntou-me se estava satisfeito com a imagem que aparecia no ecrã da máquina. Respondi que sim, embora a fotografia mostrasse um tipo sem óculos e bastante desfocado, que eu jamais conseguiria reconhecer. 

26. Para onde quer que se olhe, há gruas a disparar em todas as direcções sobre a cidade. Fortalezas voadoras a competir com pardais e gaivotas pelo domínio do espaço aéreo. No chão, os manobradores parecem miúdos com joysticks a olhar para o céu. Heróis de um jogo de guerra, prontos a conquistar mais um metro quadrado de terra, casa após casa, rua após rua, bairro após bairro, um dia após o outro. 

25. Aquelas pessoas que escrevem um nome, uma frase, uma declaração de amor no cimento ainda fresco. Qualquer coisa que perdurará anos, décadas, até à próxima campanha de obras públicas ou até à próxima guerra. Passamos pela inscrição todos os dias e já não damos por ela. É como se não existisse. Exactamente como certos livros nas bibliotecas. 

24. Da mesa do café, observo o casal na esquina da Constituição com Faria Guimarães. Têm à volta de cinquenta, talvez um pouco mais. Despedem-se com um beijo e um breve toque de mãos. Ela sobe a Constituição, ele espera que o semáforo passe a verde para descer Faria Guimarães. Antes de atravessar a rua, ele lança ainda um olhar na direcção dela, e quase consigo ouvir a pergunta a ressoar dentro da sua cabeça. A velha pergunta. A terrível, a negra pergunta: «Será a última vez que a vejo?» 

23. Dedicatória na primeira página de Três poetas da própria existência, de Stefan Zweig, livro que encontrei, entre bibelôs de porcelana, sapatos de senhora e calças de ganga usadas, hoje mesmo, na Feira da Vandoma. 

22. Quando o Manuel Resende regressou a Portugal, depois de longos anos emigrado em Bruxelas, instalou-se numa casa nos arredores de Santarém. 

21. Um dos contos mais famosos de Virgilio Piñera narra a história de um homem que se alimenta literalmente de crianças pequenas, «de poucos meses». Uma espécie de apreciador swiftiano das qualidades gastronómicas da carne de criança.

20. 2017 está a ser um ano bom. Em pouco mais de dois meses, conseguimos partilhar com amigas e amigos, conhecidas e desconhecidos, leitores e engenheiros astrofísicos, dois livros de que nos orgulhamos até à baba: 

19. Um homem acorda a meio da noite. Senta-se na beira da cama, coça as costas, resmunga qualquer coisa, tacteia o chão com os pés à procura das pantufas. Encontra as pantufas ao fim de sete segundos, mais coisa menos coisa, ajeita-as com a pontinha dos dedos e calça-as. 

18. Boniface desejava ganhar asas e voar. Um desejo que, obviamente, não tem nada de extraordinário. Em toda a parte há gente que gostaria de voar, mas não como ele. 

17. De todos os objectos que existem no mundo, o guarda-chuva é aquele que presta ao homem os mais assinalados e distintos serviços. 

16. O que é pior do que um calo no pé? Eu respondo: óculos sujos e embaciados. Pode correr-se o universo inteiro que não se encontrará coisa pior. 

15. Havia já algum tempo que Goetz Hebler se sentia vigiado. Voltando-se, quando caminhava pela rua, não avistava vivalma; mas tinha a certeza de que alguém o observava. 

14. Era uma vez um homem que estava preso ao céu por um fio. Se o fio era real ou apenas aparente, não me atrevo a afirmá-lo, visto não possuir nenhuma pedra-de-toque que me permita distinguir, sem margem para dúvidas, o verdadeiro do falso. 

13. Era uma vez e várias vezes um homem que mudava de cor segundo as condições meteorológicas. A pele exibia um inconfundível azul-celeste em dias de sol, era turquesa quando fazia muito calor, damasco com nuvens escuras 

12. Um homem passeia-se de eléctrico por toda a cidade. Há vários dias que não faz outra coisa. Na verdade, é a única coisa que sabe fazer. 

11. Definições de Lit.ª 

10. aforismo um pouco longo 

9. Circunstâncias favoráveis 

8. A roda 

7. Sacudir o pano do pó à janela: 

6. No seu íntimo, o homem carregava um grande segredo. Só não conseguia lembrar-se que segredo era esse. 

5. Abriu um livro para enganar o estômago. 

4. Deus acredita em que Deus? 

3. Informação ao leitor 

2. Gralhas 

1. Conheces Manuel Resende? 

7 perguntas a Rui Manuel Amaral

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