A prosa e a poesia se diferem
pelo mistério:
a casa era sem portas e janelas (…)
isto é prosa
a casa era de vidros e silêncios (…)
isto é poesia
pela música:
era uma vez um eco que dizia (…)
isto é prosa
era uma vez a vez a vez a vez (…)
isto é poesia
pela forma:
sob a luz apagada ele dormia (…)
isto é prosa
sob o peso da treva era o seu sono (…)
isto é poesia
pelo motivo:
a infância veio visitá-lo um dia (…)
isto é prosa
a infância acordou-se nos seus olhos (…)
isto é poesia
pela pintura:
o seu rosto era branco como o mármore (…)
isto é prosa
o seu rosto era um pássaro de nuvem (…)
isto é poesia
pelo equilíbrio:
o sol estava vertical no céu (…)
isto é prosa
o sol caía sobre a própria sombra (…)
isto é poesia
pelo movimento:
a flecha arremessada pelo arco (…)
isto é prosa
a flecha além do arco era uma asa (…)
isto é poesia
pelo ritmo:
era no dia o sol — na noite a lua (…)
isto é prosa
era no sol o sol — na lua a lua (…)
isto é poesia
pela força:
a lâmina brilhou sobre seus olhos (…)
isto é prosa
a lâmina de luz cegou seus olhos (…)
isto é poesia
pelo assombro:
o chicote vibrou como uma cobra (…)
isto é prosa
o chicote vibrou como um relâmpago (…)
isto é poesia
pela imagem:
dentro do rio era canção das águas (…)
isto é prosa
dentro do rio era a canção dos peixes (…)
isto é poesia
etc etc etc
(…)
Publicado in Poética: pré-manifesto ou anteprojeto do Realismo Épico (época-épica). Recife: Ed. Universitária, 1977