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Casa e terreno

Casa e terreno

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OS outros também somos nós, elevou o tom de voz e repetiu a frase, duas vezes. A turma não se manifestou. A apatia do grupo serviu apenas para aumentar o tom da reprimenda, sabiam-no, mas como esse seria o motivo para as conversas no corredor, continuavam o boicote da aula. As palavras ricocheteavam nas paredes da sala mas perdiam-se no chão, o locutor caminhou pelo meio dos rostos inexpressivos, a voz baixou quando a campainha anunciou o fim; o professor obrigou-se ao silêncio enquanto a sala foi abandonada.

– Hoje vai ser um daqueles dias…
– Começaste com um sermão, foi?
– A tolerância tem limites.
– O mais provável é eles pensarem o mesmo.

Chave na fechadura, inspirou para encarnar o personagem, rodou e ouviu um estalido. Beijou a mulher defronte do ecrã televisivo, tentou adivinhar o jantar pelo cheiro espalhado nas divisões, validou a certeza de as coisas existirem para serem assim, resignou-se ao perfeito. Recusou dar atenção ao nó no estômago, persistente e agudo, insistiu ignorá-lo com o relato do dia mais as queixas usuais, eliminou a frustração com anti-ácidos. Quis aprender a normalidade, o banho-maria aconchegante do sossego, quis sobretudo, acreditar no discurso conciliador da esposa, dar-lhe valor.

– Confesso, utilizei termos pouco éticos mas não me compreenderiam de outra forma.
– São um produto da sociedade em que vivemos, sabes isso…
– Respeito a teoria mas… caramba!
– Levas demasiado a peito essas atitudes, são adolescentes e querem impressionar.

O táxi arrancou e o homem ficou em frente ao portão vermelho, baixo como o muro das pedras ancestrais, fitando o edifício. Casa e terreno. Dois pássaros indecisos pousados nas estacas de amparo do arame farpado, impacientes, oscilavam entre partir ou ficar. O olhar humano preferiu concentrar-se nas coisas sem vida aparente, silenciosas memórias de estranhos, paredes cheias de gente para descobrir. Procurou as chaves nos bolsos do casaco, abriu o portão e retirou a bagagem da via pública, subiu as escadas com o coração na boca. Sem culpa.

– O senhor nunca fala da família.
– São assuntos meus, que vos importa?
– Veio viver para cá, está sempre sozinho…
– Quem vem de fora pode começar-se outra vez.

A velha deixara pender a cabeça para que a julgassem adormecida, as outras mulheres baixaram a voz mas continuaram a conversa, as palavras escaparam-se pela janela da sala aberta para o alpendre. Veneno puro. O motivo do falatório estava na cozinha a preparar chá. A velha já vivera o suficiente para ser imune às palavras mas a hipocrisia… faltava-lhe o sangue-frio e os preceitos morais acabavam por fugir-lhe boca fora, para evitar incómodos à filha preferira fingir não estar presente, desde a chegada das visitas.

– Ninguém desaparece assim, as pessoas comentam, não é?
– Ela já foi chamada à esquadra cinco vezes. As pessoas falam.
– Que disparate! Foi prestar informações…
– Quem vê caras não vê corações. Dizem.

Caixotes empilhados como torres, outros em fortaleza, transformaram os livros em objetos inanimados, vidas adormecidas. O homem começou por abrir as janelas para a luz inundar os espaços, o ar percorreu-se para levantar poeira, retirou os lençóis que cobriam o mobiliário. Resolveu abrir um caixote ao acaso, com os olhos fechados retirou uma obra e adivinhou uma página, o conteúdo surpreendeu-o. Releu as palavras, caminhou pela sala e estacou defronte da porta escancarada, como se fosse janela, olhou os dois pássaros: observavam-no.

– Ontem escrevi uma carta.
– Afinal sempre tem família?
– Foram as minhas últimas palavras.
– Brindamos ao defunto?

Quando o advogado lhe voltara a explicar tudo, continuara atónito, herdara uma casa e um terreno numa ilha dos Açores. No meio do mar. Proprietário. Guardara segredo sem perceber porquê, começara por pesquisar sobre o lugar e programara a viagem, cuidara de todos os detalhes sem levantar suspeitas, sôfrego pelos dias seguintes; numa qualquer manhã beijara a esposa, mentira-lhe sobre uma reunião na escola e conduzira até ao aeroporto. O primeiro sinal de abandono, reconhecido como prova pelas autoridades, fora o carro esquecido no parque de estacionamento.

– Sinto pena dele.
– Pena?! Mas na carta ele…
– Não confundo as coisas.
– Sem ódio e sem perdão, portanto.

SOBRE A AUTORA:
M. Lisboa, natural da cidade do Porto, nasceu em 1976. Desenvolve a sua atividade profissional num estabelecimento de ensino da rede pública, na Região Autónoma dos Açores. É autora do blog poeta?desacordo. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2017.

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