QUANDO as rodas do avião tocaram a pista, os passageiros aplaudiram, houve euforia. O piloto repetiu as palavras protocolares próprias do final da viagem mas perderam-se na azáfama dos que aterravam na ilha. Olhavam-se cúmplices, tinham abandonado pátrias fictícias por uma metrópole cinzenta, esquecida essa promessa, começariam outra vida. No aeroporto esperava-os um passado de gente.
– Portugal é um país pequeno…
– Ah, sim? Os vossos ditadores apregoavam o contrário.
– A ditadura já acabou, é passado, temos de pensar no presente e…
– O presente não é fruto do acaso.
– Não há empregos para esta gente toda. Quem é que os vai sustentar?
O faroleiro pousou o cigarro, tirou os óculos e viu como a luz emprestava magia ao pó da cinza, o movimento das partículas assemelhava-se a um bailado. Reconheceu o fantasma no fio de fumo a escapar-lhe dos dedos, expeliu o outro que prendera no corpo, estendeu a mão para lhe tocar, sentiu o calor esvair-se, ao mesmo tempo, a dança acabou. Ouvira o medo do futuro subir as escadas.
– Já não chega teres de trabalhar para nós…
– Não se abandona a família.
– E ainda por cima trouxe aquela… tu achas justo?
– Deixa aí o almoço e vai para casa.
Primeiro chegara a indiferença, amanhecer e adormecer ao lado de um estranho, depois viera o ressentimento. Manso. Os silêncios a tomarem os espaços da cumplicidade, acordar e anoitecer na companhia de um outro, palavras presas na garganta ou afogadas em vinho. Tanto. Um lar transformado em casa, dois habitantes esquivos como atiradores furtivos de sentimento nenhum. Por fim, a promessa de um recomeço.
– É uma menina.
– Até nisso…
– Ó mãe, não comece com as suas coisas…
– Pronto, pronto… não precisas de me falar nesse tom.
– É sua neta.
– Não, é tua filha.
A professora chamou a rapariga ao quadro, sem hesitar disse o nome dela com regozijo, alguns estudantes sentiram-se incomodados, aquele tom era-lhes familiar. Ela caminhou devagar com os olhos fixos no chão, procurava as palavras da mãe – é só um ano, tu continuas, ela será sempre a mesma. Parou junto do quadro e conjugou, no pretérito mais-que-perfeito, o verbo retornar.
– É verdade que vocês nascem com cauda?
– Não percebo.
– A minha mãe disse-me que vocês nascem com cauda e, ao fim de dois dias, ela cai.
– …
– Eu gostava de ter cauda, podia pendurar-me e balançar no tronco das árvores.
O mar cercava-lhe o olhar, o horizonte como uma linha cinzenta, sempre maior do que a imaginação, os sonhos fechados nas margens da ilha. A rocha queimava-lhe a planta dos pés mas sentia conforto naquele ardor, uma espécie de masoquismo sereno, a certeza do definitivo para sempre. Nem a brisa lhe acalmava o fogo latente da raiva, a espuma das ondas quebrava, o saber-se prisão.
– O teu avô trabalhou muitos anos para vos sustentar…
– Outra vez essa conversa?
– O passado importa, não percebes? Havia tanta miséria e…
– Eu não lhe pedi nada.
SOBRE A AUTORA:
M. Lisboa, natural da cidade do Porto, nasceu em 1976. Desenvolve a sua atividade profissional num estabelecimento de ensino da rede pública, na Região Autónoma dos Açores. É autora do blog poeta?desacordo. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2017.