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Isto não é a América

Isto não é a América

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NO HORIZONTE azul e cinzento, confirmou, nada de novo; não se sentiu tocada pelo desaparecimento do astro rei, a maresia não despertou recordações pueris, nem os sons distintos dos cagarros lhe providenciaram uma epifania. A memória é uma armadilha, murmurou para si própria, convencida da insensibilidade adquirida pelas décadas passadas fora. Lá fora. Não partilhava a nostalgia folclórica dos seus compatriotas, a família disfuncional não solidificara as raízes identitárias e as circunstâncias sociais haviam-na precavido contra os egos coletivos. Expirou inesperadamente.

– Orquídea? É esse o nome?
– Sim, mãe, já lho disse imensas vezes.
– Confundo com Margarida, flores, já se sabe…
– As flores não são todas iguais.
– Nem os jardins, uns são melhores do que outros.

O homem segurou com força as chaves do carro, sentiu o estômago a dar sinal, incomodado. Apanhou os olhos do chão e lançou-os em redor, as cores escuras contrastavam com a brilhante luz solar, um repente. O súbito silêncio dos presentes. Uma brisa inusitada pontuou a ausência das vozes, sussurros cinzentos entre os túmulos, cessou quando o sacerdote puxou do verbo. O homem passou a fitar o padre, escutou as palavras sem as ouvir, continuou a apertar as chaves do veículo, fora-se a indisposição: tinha fome.

– Esse assunto não é passível de discussão.
– Como?!
– A cerimónia realizar-se-á, como sempre.
– Mas…
– Cumprir-se-á a tradição.
– Eu…
– Eu? Nesta família isso não existe.

No banco traseiro da viatura, a criança desistiu de olhar pela janela, vislumbrara apenas costas de gente adulta, aborrecia-se. Estranhara a atmosfera mal acordara, sentira a mãe chorosa e triste, menos palavras. Suspirou para mover-se na cadeirinha, pressentiu o sono chegar e olhou a ama atenta, adormeceu. Acordou com  o movimento do automóvel a arrancar, percebeu os pais nos bancos dianteiros, sentiu a presença da ama e sorriu para a avó. Uma surpresa.

– Mais ninguém te consegue ver?
– Apenas tu.
– Também não te conseguem ouvir?
– Não.
– Como chegaste até aqui?
– Bastou-me pensar em ti.
– Por que vieste?
– Para te contar uma história.

A mulher concentrou-se nas palavras do sacerdote para encontrar culpas, entendeu a irracionalidade do próprio pensamento mas deixou-se ir, emocionada, como se cumprisse uma tradição obrigatória ou um ritual muito antigo, hábito imposto pela cultura. Assoou-se ruidosamente. Prescindiu da culpa quando se concentrou na lápide, concebida e talhada segundo as instruções da velha; os pés do anjo, figura imponente do conjunto escultórico, esmagavam um ramo de flores. Olhou com mais atenção e percebeu. Orquídeas.

– Que idade tinha quando emigrou?
– Onze anos.
– Foi difícil sair da ilha?
– Não.
– Voltou para ficar?
– A minha vida é lá fora.
– Por que voltou?
– Tenho uma neta.

O horizonte azul e cinzento acompanhava o olhar e marcava a direção dos vitelos. As vacas seguiam mais à frente, quando chovia a canada transformava-se num caminho escorregadio, os animais cambaleavam. Fazia frio. O rapaz olhou pela janela do autocarro para fugir à história, tantas vezes escutada, sem sucesso, a mãe continuou. Quando o teu tio nos chamou para virmos, sabes qual foi a primeira coisa em que pensei? O rapaz encolheu os ombros, sabia mas não podia estragar o monólogo, a pergunta era retórica.

– Tem vinte e oito anos.
– E qual é a escolaridade?
– Quarta classe.
– Sabe, portanto, ler e escrever?
– Em português, diz ao senhor que só sei em português, mas percebo tudo o que ele diz.

Por M. Lisboa autora do blog poeta?desacordo

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