O AMBIENTE bafiento da venda contrastou com a chuva ininterrupta deixada além da porta, o olhar fastidioso dos homens transformou-se com a notícia, a aguardente lavou os copos de vinho para celebrar o nascimento, menino e menina – disse o pai, bastou um trago para comemorar, a segunda palavra carregava desprezo. Na casa, a parteira deixou as outras sozinhas, percebeu o futuro e escolheu o silêncio, caminhou para a cozinha e brindou com a avó, junto ao fogo – uma curiosa, adivinharam.
– Foi o destino, não se escolhe, acontece.
– Era tão perfeito, um rapagão, não me conformo.
– Olha para ela, tão sossegadinha, vem ver.
– Também não deve durar muito, nem chora.
Na igreja tudo se processou da mesma maneira, lugares marcados por género e organizados pela estratificação social, o sacerdote conduziu a eucaristia em latim, o forte cheiro a incenso impregnou os fiéis. A menina não largou a bata da avó, olhos fixos nas costas de quem as precedia, não percebeu o discurso, mas intuiu o sagrado pelo silêncio cerimonioso dos outros, a imobilidade quebrada por gestos repetidos, dedos cerrados na bainha. Um dia, sentiu o rosto molhado e percebeu que chorava – em silêncio, observaram.
– Tão riquinha! Como te chamas, pequena?
– Ela não fala.
– Coitadinha! É muda?
– O sol também não fala e nasce todos os dias.
A jovem deixou o corpo sem olhar para trás, atravessou o quintal, passos rápidos transformados em corrida, à espera de encontrar alguém, uma pessoa para concretizar o acontecido. Mais tarde, perguntavam-lhe se tinha pesadelos, exigiam-lhe um carpir para se tornar humana, igual aos outros. Preferiu o silêncio, calou e consentiu, deixou-se crescer como lhe permitiam, aprendeu o sorriso baço e inalterável. Às vezes, chorava sem razão aparente – sempre presentes, concordaram.
– Corisco! Mas ela fala?!
– Quase nunca.
– Julguei que fosse…
– É.
O muro branco do cemitério desviou o olhar dos presentes, a luz teimou ser mais forte e insistiu, o sol recusou desaparecer entre as nuvens cinzentas, o céu azul permaneceu firme, contraste entre o ser e parecer, mármore esculpido em memórias construídas. Cruzes e credo. Ouviu o silêncio de dentro para fora, escutou o discurso continuado do costume, sentiu o impulso do impossível como se o soubesse traduzir, semblante alheado da situação. Olhos secos inundados de luz – quietos, invisíveis, calaram.
– Quando partem?
– Mal chegue a carta de chamada.
– E a rapariga? Vai ser difícil arranjar trabalho.
– Não é para isso que ela me serve.
A mulher pousou o saco das compras, plástico pago para transporte, desenrolou-se como uma serpentina, soltou fogo. Os transeuntes não pararam. Quebrou-se a harmonia, invisível aos outros, mas tudo se processou em silêncio. A transformação não acompanhou o saco caído, notório nas pedras de basalto, não degradável, nunca oculto. Só as lágrimas foram visíveis – outra vez, murmuraram.
– Parece a muda quando era rapariga, já viste?
– Mas esta fala, eu já ouvi.
– E percebeste?
– Não entendo inglês.
SOBRE A AUTORA:
M. Lisboa, natural da cidade do Porto, nasceu em 1976. Desenvolve a sua atividade profissional num estabelecimento de ensino da rede pública, na Região Autónoma dos Açores. É autora do blog poeta?desacordo. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2017.