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Xô, Satanás!

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UMA das tradições japonesas de que mais gosto é o “Setsubun”, ocorrida todos os anos no dia três de fevereiro. Consiste tal prática em usar uma máscara com as feições de um diabinho vermelho ― o “Oni” ―, papel esse representado, em regra, pelo “chefe” da família. Em tal representação, claro, há todo um caráter patriarcal, que bem reflete o modelo de organização familiar própria do Japão: um modelo, aliás, constantemente criticado pelo apressado olhar ocidental. Mas é justamente no elemento do patriarcalismo que reside, a meu ver, o “grande barato” do “Setsubun”: na possibilidade de desafiar, nem que seja simbolicamente, o domínio masculino no lar ― uma vez que os demais membros da família têm a oportunidade de vingar-se do chefão: atirando contra este “feijões de soja”, até que o “indesejado demônio” saia da casa; levando com ele, ao mesmo tempo, todo tipo de azar. E, enquanto o “pobre homem” vai sendo massacrado por um pesado bombardeio de feijões, a esposa e os filhos vão gritando: “Oni wa soto! Fuku wa uchi!” (em uma tradução aproximada: “Demônio, fora! Sorte para a casa!”).

Quanto ao motivo de o “Setsubun” realizar-se no início de fevereiro, a explicação é tão simples como o ritual em si: no Japão, o segundo mês corresponde ao fim do inverno e ao começo da primavera. O “Setsubun”, pois, seria, nessa fase de transição, uma forma de expulsar do lar todo e qualquer espírito maligno.

Aliás, o povo japonês, assim como ocorre em nossa cultura ocidental, adora praticar rituais de boa sorte. Por exemplo, na província de Hyōgo, é realizada anualmente, no dia dez de janeiro, uma “corrida no templo”, que funciona em um estilo muito similar aos cem metros rasos do atletismo: com os competidores cruzando em velocidade desde a porta de entrada do templo até o local principal de oração. O vencedor dessa corrida maluca, acredita-se, terá um ano repleto de sorte e boas notícias. Uma crença que, ironicamente, no ano de 2019, não funcionou para o ganhador do desafio. Trata-se de um bombeiro que, ao ser entrevistado pela tevê logo após o grande feito, dedicou sua vitória à esposa e ao filho recém-nascido. Ocorre que, na hora, quem estava assistindo à referida entrevista era a amante ― que afirmou não saber que o festejado “Usain Bolt” era casado! Pois bem: para piorar a situação de nosso atrapalhado herói, a tal amante resolveu afogar as mágoas (como virou costume em nossa modernidade) nas redes sociais.

Pobre bombeiro! Decididamente, não era o tipo de sorte que estava esperando com a glória e a notoriedade alcançadas no templo. Talvez, quem sabe, ele ainda tente recorrer aos feijões do “Setsubun”, mas duvido que isso restaure sua sorte: pelo menos, no lar. Pelo visto, dessa vez, o diabo veio para ficar…

EDWEINE LOUREIRO nasceu em Manaus (Amazonas-Brasil) em 20 de setembro de 1975. É advogado e professor de idiomas, residindo no Japão desde 2001. Premiado em concursos literários no Brasil e em Portugal, é autor dos livros “Sonhador Sim Senhor!” (2000), “Clandestinos” (2011), “Em Curto Espaço” (2012), “No mínimo, o Infinito” (2013) e “Filho da Floresta” (2015), “Trovas escritas no tronco de um bambu” (2018) e, mais recentemente, pela editora alemã JustFiction! Edition: GOTAS FRIAS DE SUOR (Microcontos góticos, 2018):https://www.morebooks.shop/store/gb/book/gotas-frias-de-suor/isbn/978-613-7-39949-1

Página para contato com o autor: https://www.facebook.com/edweine.loureiro

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