O CALOR começa a surgir como se estivesse na sua hora de recreio, o Inverno dentro das paredes cinzentas onde as portas de madeira se encolhem encimadas pelos números alfabéticos que identificam as salas onde, pacientes, professores professam o futuro.

O final do ano lectivo parecia moldar o emaranhado quântico adivinhando a ligação que, com pena minha, nunca se verificou. Longe de saber que cada qual seguiria o seu caminho, mantive-me percorrendo os anos em torno de mim, experimentando, soltando, prendendo, ganhando, perdendo, ensinando, aprendendo, olhando para o lado sobre as montanhas como quem mira sobre o ombro e os vê ali, os amigos, na sua própria órbita, separados por um intervalo grande a caminho do bufete ou do campo de desporto, a trautear uma música da adolescência, a olhar timidamente numa fugaz paixoneta típica da juventude.

Aproximava-se o término de um ciclo, a aula de Matemática termina num intervalo de números inteiros com início em um, fechado, e fim em doze, também fechado. Doze anos que culminam num período onde registar imagens ou histórias era alcançado com o olhar atento, perscrutador, das faces dos colegas sem o imaginar, sequer, que o fado poderia, simplesmente, lançar-nos em ramos distintos de uma árvore chamada vida. Longe da digitalização quotidiana, eramos analogamente felizes sem sabermos que, na simplicidade mundana de sermos sem subterfúgios, passávamos os anos da adolescência longe da mundana existência de ser quase adulto, não porque nos desconhecíamos homens e mulheres, éramos somente felicidade em movimento, sem qualquer recenseamento.

Arrastámos as cadeiras e fomo-nos perfilando, lado a lado, alunos e professora, acotovelando-nos timidamente sob o olhar da objectiva nos pequenos passos laterais que o destino, no seu desatino, transformou em anos e a amizade se foi afastando, sem esmorecer, longe de imaginar o reencontro, emocionado, passados quase trinta anos. A fotografia chegou volvidos outros tantos anos, como um pequeno postigo para a candura. Somos aquilo que depois da ventura ainda em nós perdura. Tantos rostos que viviam em mim sem o saber! Nunca foram suficientes os abraços, mas resistem ainda os laços, como memórias que se recusam a deixar-nos esquecer no inexorável percurso biográfico. Ainda assim a fortuna chega a tempo de nos fazer dizer obrigado, apesar de em silêncio.

Olho ainda introvertidamente para a máquina fotográfica, vejo-os, à esquerda e em pé os rapazes, à minha frente e abaixo, nas metálicas cadeiras frias, as raparigas e os seus sorridos tímidos. Sinto no ar o odor morno de uma afeição que não poderia sequer imaginar vir a trazer-me tantas saudades.

Tacteio o ecrã lentamente, faço zoom, para que nada escape à minha memória, as faces, os sorrisos, os sonhos, os projectos, os nomes que tão cedo ascenderam já ao lado de lá da imagem, como o Adão e o Fernando que, por cima do meu ombro, espreitam para verem como ficaram na fotografia e me guiam as mãos no teclado porque os meus olhos, húmidos, já não conseguem escrever.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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