O APROXIMAR-SE da véspera de Natal traz consigo uma urgência em conjugar o Filho do Verbo em forma de tempo Presente. As encomendas atropelam-se no fornecedor da pintura que mistura cores brancas com frisos vermelhos num cinzento aclareado ou um preto chocolate preto, não muito branco ou acastanhado. O que é a cor?
O último sábado antes da véspera de Natal traz um rebuliço entre embrulhar a mobília no celofane, para proteger e fixar a carga de forma a que, pelas curvas da margem esquerda do Douro, não se contraponham e misturem o puzzle previamente delineado, e o ajustar do assento da carrinha, o procurar uma máscara limpa e sorver um café quente, torrado, e um aperto de mão amedrontado pelas variantes que pululam em diversos noticiários.
A tolerância acompanha o advento quando, a cada cruzamento, um sinal de máximos permite anuir a passagem perpendicular doutros que, num também adventista humor, agradecem com outro sinal de máximos ou um sorriso e uma mão no ar.
Pelo telemóvel chegam as indicações, “não há que enganar”, após algumas curvas, a casa da senhora da cozinha queimada, os monumentos que o meu pai gosta, o virar à direita depois do café que já não é café e que agora está fechado, a casa encostada à casa igual é a primeira paragem de uma manhã de sábado que se espreme para caber nela todas as entregas em forma de presente, mais ou menos escondido.
O denominador comum é a simpatia e a simplicidade. Há pessoas riquíssimas que pagam a vida às prestações. Encostado o mais possível à margem, espero que passe o tractor verde, para depois levar, peça a peça, a cama e os camiseiros, que pouso cuidadosamente na varanda. O colchão e o estrado ficam para o fim.
A receio, educadamente, a voz cândida pergunta, em modo de pedido de desculpa por ainda estar no quarto a cama antiga se podemos desmontá-la. Sem grande esforço, ajoelhados no chão de tijoleira, desmontados cabeceira, peseira, ilhargas, alinhando tudo no chão recém lixiviado em limpeza pré-natalícia.
– Tenha cuidado por favor com o colchão, para não se molhar no chão.
– Vai aproveitá-lo? – pergunto, depois de o pousar sobre as travessas de eucalipto da cama antiga, para não se molhar.
– Sim, vou dar tudo a quem precisa mais do que eu.
Sorrio, montámos a cama em tempo recorde, arrumámos a ferramenta, batemos a porta da carrinha e o sábado, que ainda escorre cedo pelas solarengas costas das encostas do Douro, sorri-nos traquina sabendo que me trouxe mais um presente e um pouco mais de fé na humanidade.
Há uma riqueza infinita em quem valoriza mais as pessoas que não têm, do que aquilo que a própria pessoa pode ter.
Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.