SOU arrancado do estado de hipnapompia, quando tento reter o que a noite me quis dizer, pelo toque ritmado do telemóvel.
Um amigo, quando nos contacta a horas matutinas, principalmente quando muitos de nós já atravessamos as horas vespertinas de uma existência terrena, só pode significar um abjecto motivo (para fugir à palavra triste). A serenidade na voz, entrecortada com as falhas típicas da emoção a enrolar-se entre o que as cordas vocais vibram e o coração, descompassado, a tremer de sentimento. Acredito que nestas situações, o cardíaco queira morar fora de nós, na gravidade típica de um plano que não nos deixa volitar de encontro ao que ascendeu. “O meu pai partiu”, ouvi. Por momentos nada me sai do peito. Valha-nos a fala como percursora de uma telepatia que acompanha crianças adultas a quem basta um olhar para reviver a inocente alegria.
Não há muito mais além disto. Uma frase afirmativa, uma negação ao que cavalga pelo peito acima, o esperar pelos detalhes horários e o cálculo do tempo de chegada. Depois, surge a lâmina pela cara barbada e o reviver de memórias enraizadas que, confesso, já nem sabia possuir. Quando algum dos tijolos da nossa realidade é levado, é impossível que nada sobreviva à vontade súbita de, em silêncio, agradecer e reconhecer o seu papel nas nossas vidas, ainda que infantes e deixar desfolhar os cheiros e as cores que parecem trazer do etéreo um cunho de autenticidade, como que afiançando “Eu vivo”. E assim é, vejo o Ford Escort azul a fazer marcha-atrás no velho caminho de terra, a sua voz grave e o sorriso simpático por baixo do bigode negro e, mais tarde, o aperto de mão adulto a quem nos habituamos ver longínquo, as idas ao rio, os pontapés na bola, a música, as adivinhas “Qual a cidade que está na ponta do nariz do cão? Qual a cidade que abre portas?”. É como se nunca deixássemos de ser crianças perante os que conhecemos já mais velhos e adultos, já sem bigode, o cabelo alvo, o sorriso sereno. Aquilo que amamos não é terreno. É eterno. E não os vemos vivos porque, tristemente, ainda não nascemos.
Vamos agendando encontros, adiando partilhas até que uma morte, a inevitável partida para um destino final, finalmente, de leveza e libertação deste grilhão a que chamam vida, com v minúsculo, nos traga de novo juntos num abraço e procrastinemos um encontro para, quem sabe, uma outra partida.
A tarde lúgubre conforta a chuva que cai desamparada e embora me assista uma certeza de reencontro longe destas actuais leis da Física, não deixo de sentir os vossos olhares, as cabeças encostadas no meu ombro, como se nunca tivéssemos saído debaixo do toldo de plástico onde brincávamos ao que seríamos quando fôssemos adultos, sem imaginarmos que somos afinal isto, em homenagem a todos os que partem antes, um desmedido abraçar amigo.
Não me restam palavras. Não que a emoção não permita, mas porque de facto nada há a falar, além de um firme aperto de mão e um sincero cingir forte ao peito e alguém que, afogado numa emoção aprofundada pela partida recente, se agarra a nós e nos beija o ombro, como a uma bóia ou a um tronco de austrália antes de subir para construir uma cabana na árvore.
Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.