O CHÃO descomprimido em pó é o único entrave no caminho de um homem só. O calor agarra-se com força aos braços, a transpiração escorre-se na ânsia de se desprender da térmica sensação de se encostar a mim, compreendo-a, até eu me desejo descolar de mim.

Por entre resilientes árvores, desmultiplicadas em pinheiros e eucaliptos, um sobreiro aqui e dois ali, os paralelepípedos separados pelo musgo verde que a humidade dos últimos tempos tem deixado no chão, no ar e em mim, carregam-me no esforço de encosta acima chegar ao local onde acaba a última fiada de promessa política, rematada com um baque surdo e seco, assinalando o final dum lugar e o início de outro, menos civilizado, onde os estores das casas adormeceram para não acordarem, na esperança de uma janela melhor. Em trago difícil de engolir, a paisagem vai ondulando em montes como vagas litológicas gigantes que acabam apenas onde a minha parca visão alcança, ali ao fundo do monte, onde quem não sonha chama de horizonte.

A placa da rua está mastigada pelo Sol e pela chuva, a pobreza veste-se de amarelo pelo barrento pólen que se eleva impulsionado pelos pneus dos poucos veículos que por aqui se aventuram. O desnivelado chão pelas poças de água evaporada entorta-me as costas e as portas da carrinha e tolda-me a visão quando tento perceber o nome antes ostentado orgulhosamente na placa toponímica.

– Há-de ser aqui – diz-me o meu pai, com a sabedoria que a vida dá a quem se trabalha no corpo e torneia, com mãos de marceneiro, as milhares de histórias lidas em folhas de papel, todas gravadas na memória, afinal a vida é apenas mais uma estória.

Viro o grande volante de borracha carcomida, as mãos escorregam-se, quando a carrinha, de vidros abertos, muda de direção sinto o bafo quente que vem, ladeira acima, espreitar quem lá vem. Subimos mais um trilho, tratado a lajes de mármores calcadas cuja vegetação rasteiríssima reclamou para si, abraçando-a na pureza que a terra possui, não fosse ela nome de lar, aquele ao qual o corpo vai voltar quando eu me cansar de mim mesmo.

Puxo a pequena corrente que faz abalar a sineta, aqui sempre são boas horas de chegar. O portão abre-se e um rosto desdentado sorri, entrecortado por uns bons dias, a cara de quem se acordou à força do vibrar do ferro, o pijama riscado, alvo, a camisola ondulada pelos restos dos vincos que a cama, sozinha, reclamará quando me for embora, apesar da hora levantada, quem trabalha de noite, de dia fará o seu descanso, melhor assim, que este dia quente não vai manso.

O calor encosta-se ao celofane, gruda-se aos braços e mãos transpiradas, sinto já a camisola colada às costas, vamos subindo os vários degraus, feitos em momentos e de materiais distintos, as pernas arquejam, os braços solfejam, sopra-se aqui e ali e, pela porta apertada onde espiraladas fitas de plástico se deixam chover da padieira, entramos no estreito corredor, caminhando lentamente até o local nos dizer “É mesmo aqui”.

Quando a estante é erguida numa espécie de bailado a que estamos bem habituados, o que nos vale uma piscadela de olho síncrona e o sorriso cúmplice de pai e filho, nesta e noutras vidas, a senhora sorri e comenta “Vai sentir-se mesmo bem aí”. Entra no quarto onde a cama, envergonhada, se tenta cobrir no pudor de um leito vazio, puxa a fita que enrola a persiana até a claridade exterior entrar e prolongar a luz empurrando o crepúsculo de baixo para cima, deixando iluminado, ainda que não luminoso, o espaço da estante onde deduzi ser local para se colocar uma planta.

– Se me ajudarem aqui se faz favor… – e apontou para uma imagem de Nossa Senhora de alguma coisa, não as sei distinguir por entre tantas virtudes e enfeites, que parecia esperar no chão a proclamada ascensão. Ficamos a olhar um para o outro, pai e filho, baixámo-nos e pela base das nuvens, onde a Senhora parecia flutuar, erguemo-La e colocamo-La na estante, iluminada pela claridade e pelo sorriso genuíno, ingénuo, daquela matriarca de um lar vazio, num altar pago a prestações de gente séria, a que outros ignorantes chamam miséria.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.
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