À SAÍDA da curva onde, antes, me sustinha o esconderijo de um silêncio verde, vejo agora, ao longe, um aglomerado de paredes, propriamente e comummente, por onde respiram os poluídos rumores de camiões cuja minha visão turvam.
Abrem-se clareiras onde antes as árvores albergavam um ou outro esquilo, era a surpresa “o que é aquilo?” em rodopio espiral num tronco, ou a barriga encostada ao volante e à sombra se descansava num ronco.
Faltam-me os ramos, sobram espaços onde antes o lixo se escondia envergonhado, agora paira ao Sol o passado, apenas um sobreiro encortiçado, isolado, faz guarda de honra à tristeza que me clama, apenas porque receio não ter um dia esta cama, a enraizada matiz de restolhos que se abre onde fecham meus olhos.
Desaparecem-me, desaparecem-se, exibem largas peladas os montes, elas, árvores, que de seivas se faziam pontes, caem e jazem mutiladas na carroçaria medieval de uma atrelado, o céu que as fita desolado e eu que do futuro observo aterrorizado, procuro no presente, dentro da ansiedade dormente, a fotossíntese de uma orquídea esbatida no terror de observar ceifada a sua própria vida.
Miramo-nos, mutuamente, incapazmente, no vazio crepuscular de ver a moto-serra chegar, os braços negros musculados, o ganha-pão que se faz em corpos transpirados, a inconsistência da sobrevivência onde se perde o que não se ama, fazendo sem ardil um caminho mais rápido para um destino febril.
Não tenho mais o horizonte à minha espera, o colorido ramal onde colhia a segurança de um tecto estrelado que fita a criação do ser criado. Pouco mais resta ao que não se sabe ser amado, palavras cortadas rente ao chão, os troncos suados venceram os troncos segados, retalhados, como um talho onde os cadáveres são os haveres do que não poderemos comer e o talhante, porque também ele tem braços, lamenta por detrás da máscara de terra colada à face o suor que ganhou na jorna, encostado à berma, na mão a cerveja morna, o que temos na vida a entardecer, valerá a pena o sustento pelo que fazemos morrer?
Vi-me ontem na sombra estendida pelo chão, a silhueta do meu invólucro carnal, senciente animal, tapando as clareiras que drago ao peito com o espectro da minha própria mão.
Desvaneço com o vento, no lancil poluído de claridade, lamento, chegou o final da minha galeria verde e nem as lágrimas escorrem desprendidas, porque também crescem as clareiras que irrompem no sofrimento nas invisíveis feridas, agora que trago no peito um bouquet de ramagens abatidas.
Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.