A VIDA não aguarda a vida de ninguém. Talvez por isso saiba que, saídos contrafeitos do confinamento ou não, o monólogo invisível cacofonia-se e tem razão para isso. Todos os dias parecem ser o gaguejar do quotidiano numa tentativa de reiniciar um início que, pasmemo-nos, findou fadado que estava à nascença.

Sem gaiola que nos molde o crescimento, a existência segue, ainda que com algum lamento, o trâmite normal de orbitar os dias. Acolho-me, assim, desde as manhãs frias, na presença que levo sob a redoma onde repousam, esparramadas, as nuvens cinzentas, alvas e as que, pelo pôr-do-sol, alaranjam o crepúsculo onde chego, agora.

Arrasto os pés no cimento empurrando-me e escorregando-me pela amena superfície, a sorrir do que antevejo ser a queda por ter as mãos nos bolsos, mas não, ainda me assiste a capacidade de, tal como as sombras dos eucaliptos que ainda subsistem (ali acima, no som que vem a correr dizer-mo, moto-serras rugem enquanto mastigam o que resta dos pinheiros aqui à volta. Quem disse que as árvores morrem de pé?) ao redor, vir horizonte abaixo, até se encontrar com a dor.

Flicto as pernas, encosto o queixo aos joelhos, o capuz esconde-me do vento que anda por aqui a ventaniar-se a salvo do entardecer. Abraço as canelas e fecho os olhos. Os grilos esgrimem trinares à porta da toca, confiantes, alheios que estão agora os putos, também eles nas suas luras, ao findado, felizmente, tradicional enfiar de qualquer palhinha capaz de os tirar, aos grilos e aos miúdos, do buraco. Perdem-se maus hábitos e ganham-se outros costumes, talvez piores, cabeça enfiada entre os ombros sem que se apercebam eles, catraios, de sobranceiras cores.

Alguém passa por mim e sorri, há coisas que um homem não pode fazer sem criança voltar a ser, mas que quero eu saber? Nada, realmente, a não ser deixar-me embalar pela parede ainda quente, como um abraço dado pelo céu, logo a mim, que não o mereço, mas se para mim vem é meu e assim me esvaneço.

Quando as luzes cederam à escuridão, consegui vislumbrar, ainda, pelo que me resta de aluvião, que caso não me sobrasse vida ou não encontrasse eu a porta de saída, poderia suster-me à parede cujo inusitado cálido dia de Primavera tímida aqueceu.

Caramba, às vezes esqueço-me de ser eu. De tal modo o fiz. Feliz.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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