UMA das várias vantagens de quando andava de comboio era permitir-me passar em locais onde as árvores me viram crescer.
Ainda ensonado passava em frente à rua onde morei vinte e cinco anos, no beco para lá de uma curva que, em criança, não me permitia ver a pequena casa azul do fundo, a minha, o casulo de onde nunca deveria ter saído, amparado que estava pelas silvas, pessegueiros selvagens, pinheiros, eucaliptos e o apaziguante curioso latir das raposas bebés que procuravam comida nos restos que deixávamos no monte. Antes, sem nome, possuía a identidade de cada um que lá vivia, agora possui apenas o longo e descaracterizado nome de Travessa da Avenida de um Barão que nunca conheci. A mata que a ladeava, antes com mimosas, austrálias, fetos, mato e giestas, está agora despida, apenas com tocos de eucaliptos, resistentes, mantidos a troco de questões humanas que, sinceramente, não entendo, com as suas raízes que antes moldavam o caminho de terra onde brincava com os carrinhos improvisados e que, agora, elevam paralelos e continuam a decorar as antigas habitações com sulcos nas paredes.
Ao ver o monte despido, com um aspecto limpo, tal como deveria estar todos os montes deste país, não conseguia deixar de questionar-me como foram capazes de caber tantos sonhos num espaço tão pequeno?
A vantagem de sermos crianças é que somos coreógrafos sem o sabermos, moldamos com a imaginação cenários tão distintos quanto reais e, o curioso, é que apesar de tão distintos os putos amigos, o cenário construído era apenas um.
Naquele espaço couberam constantes seis putos a brincar, com participações esporádicas de outros miúdos, mais novos e mais velhos. Naquele pequeno pedaço de terra fomos heróis e vilões, índios e cowboys, polícias e ladrões e toda uma panóplia de interpretações que mesmo versando na trivial luta do bem contra o mal, tinha como conclusão a amizade sincera que só putos sabem cultivar.
A voz metálica do comboio anunciava a próxima estação e eu sabia que era tempo de fechar o caderno, guardá-lo no saco e fazer sinal aos sonhos, os mesmos que me abandonaram, para que saltassem de novo para o meu bolso.
SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.