COM o mesmo semblante de quando o horário atravessava uma ou duas aulas sem professores, pela inexistência ainda de portaria, na escola e no mundo, saíamos portão fora, descíamos contra a corrente da estrada nacional e mergulhávamos, inocentes, por debaixo da ponte, para construirmos pequenos lagos no rio areado, esgravatando represas imaginárias e rindo dos girinos aos quais, erradamente, chamávamos caganatos.

O que aprendi na escola fi-lo sem o saber, orbitando pavilhões erraticamente, experimentando pequenas rimas mentais, escapando ao som dos futuros que se plantavam, para me saber de volta a mim quando a matemática se lembrava de espreitar o universo e encontrar-se sozinha, porque não o compreendia.

Hoje as ruas percorrem-me sem que eu me aperceba ser asfalto. Paro o carro ao lado do tanque, o som das rãs e os seus pequenos olhos perscrutando e analisando a ameaça que eu lhes possa coaxar. A água brota da parede como um choro eterno ou uma torrente de vida, dependendo da maresia que eu traga no olhar, hipnotizam-me as eiras, beirais, as lojas ou cortes e os seus lagares graníticos que soluçam uma fermentação agora inexistente, as lajes negras abandonadas, convidam-me a caminhar pela infância, cumprimentar os mesmos rostos que comigo partilharam a catequese, levantar a mão a um velho mais velho do que quando eu era mais novo. Eis que acaricia a terra, escrutina o local onde cravar a enxada, limpa o suor com as costas das mãos para que a palma não se saiba cansada, ergue o corpo e a mão que se agarra à cintura, o olhar ao alto na penitência de não se ter raízes e a libertação de não se saber raiz. A escavadora amarela descansa ao longe, aglutinando descanso para, na próxima segunda-feira, voltar a libertar dos arreios humanos as enormes pedras que susterão a terra e o alargar do caminho. Com que facilidade nos transportamos ao redor de tudo, sem que saibamos o percurso para nós mesmos.

Desligo o carro, já não me alcança o coaxar das rãs, pela distância ou pela ausência de ameaça (ou curiosidade?) que poderia representar. Cumprimento-o, a ele e ao cansaço de sete décadas vividas e um punhado de anos ausentes, a horta sorri-me de volta e ele, que me confidenciara ter pensado em acabar-se depois da morte da mulher, levanta a beira da boina em saudação. Que monumento nos construímos à sombra dos anos que capitulamos em sincronia com o Sol? O homem, a mulher?

Digo-lhe para não se preocupar com a terra, que sempre tratou bem de si mesma, ainda antes que a soubéssemos plantar e ele ri-se, diz-me que está é a tratar dele mesmo, as couves, cebolas, nabos, cenouras e tomates são a vida a conversar com ele. E isto a escola não me ensinou ou talvez o tenha feito nas vezes em que fui para debaixo da ponte da pedra ver os girinos.

“Tem razão”, rio enquanto levanto o braço e esboço um acenar despedindo-me, “esta vida são dois dias, um a seguir ao outro” e antes que conseguisse baixar a despedida e novos acordes soassem no rádio trôpego do carro, respondeu-me,

“Para ti sim rapaz, mas para mim não, eu já cá não estou.”

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publicou regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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