A tarde de sábado, com um vento frio, traz consigo a última saída de casa de um octogenário jovial, sorriso fácil, tracto doce. A aldeia, apesar de vila, habita-se ainda dos idosos que resistem, enraizados, ao soluçar da passagem do tempo, testemunhas que são de um progresso que trouxe comodidade ao corpo, mas vazio às pessoas. Somos todos o classificado algoritmado potencial cliente de algo. Quem nada compra, nada vale. E quem nada vale não tem valor. Há quem lhe chame solidão. Há quem lhe saboreie a dor.

O sobretudo negro pesa-lhe tanto nos ombros como as translações completas a um astro que o Homem habituou a respeitar. Cumprimenta-me com um acenar de cabeça. O sorriso quente que me aquece, debaixo do toldo do café, abrigado de mim mesmo. Dirige-se à montra do minimercado, por entre cartazes de festividades com horários para visitas filarmónicas e dos recentes “procuram-se trabalhadores”, uma folha timbrada, cinzenta, o logótipo de uma funerária, uma fotografia colorida, antiga, um nome encimando-a e, por baixo, entre parêntesis, a idade. Há um reconhecimento de fim de ciclo natural, o tradicional descanse em paz, o animado foi desta para melhor e o silenciado boa viagem de regresso a casa.

Volta costas e olha-me, há uma rua vazia entre nós, os buracos da incúria e desleixo desenham o relevo do que nos separa, várias décadas e um punhado de acenos amigáveis que me habituei a saborear. O vento corta-me a feição, o sorriso circunstancial não convence o final de tarde, cujo Sol poente mareja de alaranjadas sombras e inusitadas e rosadas nuvens tecem teias celestes, não vão os sonhos escapar. Neste olhar, quase tudo me foi dito. Um amigo que parte. O peso da idade e da perda sobre o tecido que o cobre abate o sobretudo cansado. Sorri-me. Sorrio-lhe, sério. Encolhe os ombros e neste içar e abater de braços, feição, corpo, o próprio sorriso se esvai deixando o cumprimento para um resignado esgar cujo pensamento, se se pudesse escrever, diria “o próximo serei eu”.

Vejo-o entrar no jardim e, depois, ao esconder-se pela sombra da casa quase inabitada, um vulto conhecido, já partido, aconchega-lhe a gola do sobretudo ao pescoço. Um filho sabe sempre tratar dum pai.

O final da tarde traz o esbranquiçado fumo branco do fogão de lenha, apaga-se, o lume e o homem. Sei-o, porque mo disse, que é chegada a hora de se aquecer na cama, o fogão só lhe aquece para onde está virado, o cobertor fá-lo por todo o lado.

Não apenas os montes se afundam. O vento atiça os zimbros de um fogo gelado que consome mais do que a própria solidão. Imagino-o envolvido por um aconchegante molho de recordações de vida preenchida, quando me recordo da nossa conversa, eu na vida consolando-o o possível pela perda do filho e ele, sorridente, no jardim, “olha rapaz, também eu irei, quando Ele se lembrar de mim”.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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