A PAISAGEM tira-nos o fôlego na mesma proporção com que a amplitude da paisagem nos faz debruçar cada passada ao tornar de todas as placas com a toponímia característica dos locais que não conhecemos. Em terra alheia somos estranhos a nós mesmos. O vento empurra-se bonacheirão da margem direita para a esquerda do Douro, abana-me a carrinha, o puxo grisalho de uma idosa desprende-se do pente e ondula em movimentos livres de solteira. Lugar de estrepe não é na eira.

Gotas grossas caem no pára-brisas, um céu fecundo em tons de cinzento anuncia a chegada pelos latidos do cão em cima do seu castelo minúsculo, sob a guarda de honra de um limoeiro com dois limões amarelos. Ladra à chuva, para a chuva, o canídeo e não sei se poderá algum dia senti-la livre, correndo nos socalcos abandonados onde os líquenes colonizaram o que sobrou após o Inverno dos proprietários.

Nos dias em que a guerra ganhou, saíram vitoriosos à rua o medo e a desesperança, mas pouco conquistaram. Aqui a vida parece correr no sentido contrário ao rio, contra corrente, perene e inabalável, como as socas de plástico negro no equilíbrio ébrio à saída do café, sala de crise, gabinete de psicólogo e posto de venda de botijas de gás. A capacidade do homem se moldar à necessidade alheia faz prosperar a sua carteira.

Entre cada parágrafo percorro dias, não que me sobrem oportunidades de me fazer à escrita, mas há vida a mais na sobrevivência simples de quem, na sua labuta diária, sucumbe ao destino. Talvez por isso, além das regras gramaticais e, talvez, existenciais de um punhado de átomos aglomerados, me faça a mim mesmo um estranho, para que me possa descobrir a cada virar do relógio. Precipita-se mais uma gota sobre o pára-brisas, o céu ameaça sucumbir ao peso negro das nuvens bolbosas, aguardo a chegada do meu pai olhando o relógio e o espelhado rio lá ao fundo, sem me saber onde auscultar, se na telefonia ou na ventania.

Nova paragem e mais um telefonema, há que arrancar cedo para não chegar tarde ao destino, à próxima descarga de, lá voltamos ao mesmo, um emaranhado de átomos estáveis sob o celofane que embrulha os móveis. A chave estava debaixo do tapete, rimo-nos, abrimos a porta antes de entrar com um balcão alvo em casa alheia, alheados à presença de quem se rende à vida dormitando ao sabor de um acidente vascular cerebral, sem notar a nossa presença, adormecido por mais um dia preso às recordações de quando percorria as estradas e caminhos numa caixa de fibra de vidro refrigerada motorizada, vendendo embrulhado em jornal um carapau, uma faneca, uma pescada, um quarteirão de sardinhas ou um bom dia. Só nos saberemos vivos quando soubermos a falta que a vida nos fazia.

Quando as nuvens avançaram e me desliguei da condução, dei por mim sete dias depois, os móveis e nós os dois, os cálculos para a cimalha de mais um móvel que sai, ou as minhas brancas a lembrarem de mais um dia do Pai.

Se escrever é isto, o lavradio alheio em terra que nos fecunda, travo em mim a cordilheira mais funda, sem nada mais fazer do que faço. Ah, e uma garrafa de whisky com um abraço.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.

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