HABITAVAM-ME várias vantagens de ser (porque todos somos um pouco do que vivemos) uma aldeia a quem, contra sua vontade, teimavam em chamar vila. Uma delas era, sem dúvida, a estação dos correios.
O email não substitui o papel, a carta, o selo (que já não se lambem), a cola, o marco do correio, a caixa vermelha ou a caixa azul para as cartas que têm pressa.
Como não me sei ver adulto, recordo-me menino e é lá, na infância e infantilidade que procuro quando as tarde se esfriam para me aquecerem a memória, que vejo pouco ter mudado. Sim, agora os muros parecem mais pequenos e o portão mais estreito, até a porta parece mais fácil de abrir. Lá dentro tudo continua igual, o balcão, as caixas dos apartados e a cabina telefónica forrada a chamadas feitas e pessoas comovidas e tudo o mais que possuem para contar, o pequeno balcão lateral onde antes se chegava cola com o pincel quase careca ou, na descompostura do gesto, se lambia o selo e se mantinha na boca o sabor a remetente e destinatário.
Entrei, fechei o guarda-chuva e pousando-o com cuidado por entre outros, disse: “Boa tarde”. A vantagem dos tempos que não existem é as senhoras responderem e os senhores estenderem-me a mão, a mesma com que numa humildade se levanta quando se anui “pela minha palavra de honra”. Mãos de gente com olhares cansados, de corpos gastos e mãos calosas.
É dia de receber a pensão e mesmo que alguém mais tímido não quisesse dizer quanto recebe, o “senhor dos correios” conta em voz alta, numa dança do bigode, 20, 40, 60, 80, 100, e 20, 40, 60, 80 e 200, 20 e por aí fora.
Timidamente dobram-se as notas e metem-se no bolso da camisa, a mesma que deixa ver a camisola interior com a gola esbatida, gasta, puída e amarelada. Nada combina, calça, camisa e camisola, no entanto, são as faces da simplicidade, da humanidade, do aperto de mão, do tempo gasto e sofrido, olhos cujo olhar vê além das lentes, ouvidos que ouvem perto quem de lá os chama.
Desabsorto-me quando entram avó e neta e o rafeiro, contrariado, sentado à entrada com os olhos semi-cerrados devido à chuva que caía. Ao mesmo tempo sai um dos idosos, vira-se para mim e com um sorriso malandro olha-me e toca no peito, sobre o bolso interior do casaco verde onde guardou a fortuna, com o exercício matemático de contar todos os trocados para o café e bagaço e uma perdição de quando em vez, como um bolo (“e eu quero lá saber se tem dois dias ou duas semanas?”) e um sumo de garrafa (“as latas são para pôr a comida aos bichos!”).
Vem de novo a contagem, 20, 40, e “Desculpe, é para descontar a factura da água à reforma?”, “Sim”, responde, e 20, 40 60, 80, 100, e 20, 40, 60, 80 e 200, 20 e por aí fora.
SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.