É DIA de feira, como sempre é quando não sei que é. Subo a avenida principal, a mesma que tantas vezes quis saber o nome e, ainda agora, não o sei. Creio não ser importante o nome pelo qual catalogámos, as ruas ou as pessoas, embora ache curioso que esta travessa se chame “Rua do Souto” e, do nome, apenas a minha imaginação pode andar por ali abrigada pelas sombras de uns castanheiros que nunca soube darem mais do que terrenos e casas miscíveis.
Paredes tem nome de casa, de terreno entre lareiras de uma mesma brasa e, por isso, talvez me acolha quando decido deixar-me levar pela mão de quem me aquece o coração. A avenida, qualquer avenida, é feita de pessoas e eu que as tento colar à retina, vou atento a tudo o que seja gente e vento. Sorrio pela vaidade que se esvai e esfumaça quando se tenta ser o que as revistas trazem agarradas às folhas. Este mundo não parece ser para esfomeados de espírito.
As travessas parecem conduzir ao recinto da feira, vejo os carros estacionados, presos, onde antes se deixavam os animais, arfantes, com a laça na argola de ferro. A lateral da igreja não escapa, poucos crentes se atrevem a sair da viatura sem se benzerem, não vá um cristo estar atento e nos julgar cristãos sem grande alento.
O cheiro do posto de gasolina, os carros guardados que espreitam pela nesga do portão aberto e sorriem, as vozes que falam alto o que as pessoas pensam baixo “estava mesmo a pensar em ti caralho!”, o tinir das chaves penduradas na presilha das calças, a boina gasta, o tacão que esgrime passos com o chão. Há poesia que se incute e em mim repercute. Ousasse eu ser menos cego e talvez conseguisse, ainda que por momentos, ver mais além de um mundo que se enche de velhice.
A cada porta cogito sobre o negócio, correrá bem? “Olhe, por cá se rasteja”, as montras parecem adormecidas, as prateleiras enchem-se de tudo aquilo que não faz falta e, do que faz, vive-se empurrando com o esquecimento para trás. Eis que transpiro e sorriso, duas janelas sorriem de cada lado de uma porta aberta, os autocolantes de velhos sumos gaseificados, a fruta não envernizada sobre caixotes de pinho, a prateleira de madeira, a maçã encarnada que olha para mim e se ri por tudo e por nada e a dona, velha, loja própria de quem nunca comercializou vontades, ou saudades, ou lá o que é que me faz parar e olhar para dentro, de mim e do que o comércio é, vê-la ela mesma prateleira no labor de uma geira, a tábua de engomar aberta, a camisa quadriculada de azul e preto, o ferro nas mãos a vaporizar a manhã de sábado e o cheiro fresco a roupa lavada, ou seria fruta engomada?
SOBRE O AUTOR:Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.