VALORIZO imensamente as conquistas do dia-a-dia, as coisas complexamente simples, como a pessoa que, à minha frente, para comprar uma sande-almoço vai olhando o preçário e as moedas que tem espalhadas na mão como uma constelação de estrelas baças refletindo a escassez, contando e escolhendo a sande-almoço à medida da carteira e não à medida da fome e da sua necessidade. Recordo outra vitória quotidiana que a vida me fez o favor de embrulhar e trazer na maré do horizonte abaixo do meu olhar, o mar salgado por onde entram as histórias não naufragadas.

Há vários anos – pelas escolas primárias verdadeiras e térreas, brancas, espalhadas pelo país como ovelhas tresmalhadas nos prados, pastoreadas por nómadas professoras, antes de ordinais ciclos – enquanto trabalhava num projecto que me fez caiar a vida e o corpo no calor ameno de uma salamandra na sala de aula, onde se aqueciam botas, casacos molhados e leites achocolatados – conheci e estive com centenas de crianças de meios supostamente desfavorecidos, alinhados etariamente entre seis e dez anos.

Na escola, depois de estar com os alunos de duas turmas do quarto ano, a professora de apoio veio pedir-me se eu estava um pouco com um aluno NEE – sigla pomposa e urdida certamente em encíclicas educativas onde se discute o que fazer aos que se tresmalham, mas nem assim, infelizmente na maioria, abria as portas da ajuda, da compreensão e educação. Felizmente, o carinho era assegurado independentemente da sigla com que se baptizam e catalogam as diferenças. Assim fiz, a professora chamou-o e ele, timidamente, espreitou à porta e perguntou:

– Posso entrar? – o aspecto da sala não seria dos melhores, pequena, mas acolhedora, uma arrecadação transformada (com bastante gosto e cuidado) em biblioteca, um ligeiro travo a mofo.

– Sim. – Respondi, e ele atravessou a porta, sorriso permanente, diferente, movia-se coxeando, bamboleando, uma dança desconexa nalgum tipo de deficiência física que, sinceramente, não sei o nome. Convidei-o a sentar-se e ela fê-lo caindo e sorrindo sobre a cadeira. Comigo a entremear perguntas, ele, a medo, mexia no rato e via animado o cursor mover-se no monitor, não olhando para mim enquanto eu tentava criar um ambiente mais relaxado e que me permitisse encontrar pontos de interesse, até que, na sofreguidão padronizada de adulto perguntei o que gostaria de fazer quando fosse maior. Ele parou, olhou-me e naquele corpo franzino e retorcido, do meio daquela cara miúda sorridente, com olhos cansados, disse-me:

– Quero ser jogador de futebol! – Desarmou-me, fintou-me e pontapeou-me aquela manhã de uma vida distante. O que dizer? Não poderia, nunca, à luz de uma razão crescida dizer que não o conseguiria e, até hoje, permaneço sem resposta dada e recordo a humildade, o olhar, o sonho naqueles olhos a brilhar.

Sem bater na barra, rematando com assertividade própria de quem ama a existência independentemente da fisicalidade que nos traz o mundo pelos relvados que sonhamos pisar.

Foi o melhor golo que vi na vida.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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