TÍMIDA, aproxima-se do balcão. Educadamente aguarda que as senhoras dentro do casulo se apercebam da sua presença. Quando o fazem, dão as boas noites com um sorriso e um aceno de cabeça e escondem o sorriso ao discurso despreparado da senhora, que tenta saber quando abre a sala, para as pulseiras, a que tem as cadeiras azuis. Entre o tentar perceber, o conter do riso e os desvios da posição a cada vez que o bailado de uma maré de luzes azuis anuncia a chegada de nova ambulância, tentava a senhora perceber a que horas poderia estar com o marido que estava doente e devia sentir-se sozinho sem ela. Às 8:00, respondem-lhe. Virando-lhes costas, vem sentar-se ao meu lado direito. Cruzando as mãos, os dedos torpes e grossos como cascas de pinheiros, encostou a cabeça ao vidro e espreitou o relógio que austeramente, quase sincopemente, apontava as 2:00. A roupa minimalista, o blazer quadriculado, a mala de mão velha e negra, a camisa de flanela, o cabelo negro e oleoso, o cheiro a lixívia que servira certamente para lavar as mãos depois de uma labuta dura, mas correcta, com a enxada na mão a amaciar os torrões negros, como os olhos, grandes e fundos, tudo casava perfeitamente com o ar simples e o olhar puro de quem se tem na vida como um murmúrio e isso, por si só, basta-lhe. O efeminado ar resulta apenas da conversa de mãe, quando à pergunta se lá ia ficar toda a noite à espera das 8:00 e não tinha transporte ou filhos para a buscarem, responde que os meninos estavam em Espanha e as meninas no Porto. Porto… a distância de 30 km. Um porto inseguro. E as lágrimas cuja tristeza não conseguiu conter, soltaram-se emboladas para um lenço de mão, bordado com motivos vermelhos e azuis, com o murmúrio “a gente chora, mas não é de tristeza, é para tirar isto cá de dentro”. Uma fungadela. “mas Deus é grande”. Outra fungadela. “Deus é grande”. Não há telemóvel nem ninguém a quem telefonar. (Preocupo-me, a folha é curta de mais para esta vida de menos, tenho metáforas e pleonasmos propositados para plantar, mas terão que aguardar novo estio). A casa fica longe, o carro de praça transporta 40€ para cada lado. A carreira vai, dá a volta no cruzeiro da aldeia e volta, sem dar tempo para ir a casa ver a bicharada. “mas Deus é grande”. Sugerem que vá ao supermercado assim que abra, para comer qualquer coisinha, o olhar baixa timidamente, o lenço é dobrado cuidadosamente e arrumado entrando pelo pulso por baixa da camisa de flanela, diz-lhes que sim, que vai, apenas para a conversa ficar por ali.

Cruza o olhar comigo, assusta-me o medo dela, o estar fora do terreiro, a janela enorme que se assemelha a uma porta, o descerrar automático a cada passa próximo do vidro, as luzes das ambulâncias, o marchar descompassado dos soldados da paz. Pigarreio, pisco os olhos e sinto-os arder, o estômago ronca, molho os lábios com a língua e penso em meter conversa. São 2:30. Esta crónica começa-se a escrever deitada à mão cheia à terra, vou guardando referências visuais para não me esquecer dos pormenores, mas apenas o “Deus é grande” se cola às memórias pequenas. Pergunto se estava ali pelo marido, ela anui, sentiu uma dor que o impedia de andar no terreno quando andavam a tratar das batatas, ainda queria ir para casa, mas ela foi a correr ao café para chamar uma ambulância, diz-me que só teve tempo de se vestir melhor e lavar as mãos com lixívia (afinal tinha razão o cheiro anterior) e veio com ele, sentada na ambulância.

A conversa é cortada por um utente esbaforido saindo porta fora, praguejando, injuriando toda a comunidade hospitalar. “A gente não gosta, sabe, mas ainda bem que há estes sitiozinhos para a gente se tratar.” Faz uma pausa. “Custa, mas Deus é grande”. Ofereço-me para levá-la a casa, mas rejeita, vai quando ele for e isto é o recipiente secreto que tempera o amor. Juntos na saúde. Juntos na doença. Literalmente. Conto-lhe o que me leva lá, à sala de espera das urgências, ela sorri compassivamente e empaticamente, esboçando o raiar da madrugada num mar negro tumultuoso em forma de sorriso de gente simples, Gente, anunciando “Deus é grande”.

Encontro-a ao outro dia, eu razoavelmente fresco depois dum banho, ela na mesma indumentária e no ar cansado de quem o tempo se põe às costas e cavalga na dureza característica de quem masca um povo e, quando nada se segrega, o cospe. Pergunto pelo marido, ela sorri genuinamente pela primeira, já tinha estado com ele e afinal não era nada de grave, “Deus é grande”, e assegura-me que uma vizinha os leva para casa ao final da tarde. Pergunta-me pela minha causa, explico como posso e ela toca-me no braço muito timidamente, pudicamente olha-me por detrás da cortina e afiança-me “não se preocupe, Deus é grande, a gente é que não entende”.

Olho-a a sorrir num agradecimento mudo, voltei costas mais leve, mas ainda trago o abraço que lhe queria dar. Sim, Deus é grande, e cabe todinho nos infinitos universos olhos cansados de uma pura pessoa simples e sem letras.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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